São Paulo (AUN - USP) - Uma viola caipira e um pedido para o público cantar junto: foram esses os recursos que o professor Alberto Ikeda, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), usou durante sua fala na mesa Patrimônio e Modernismo, no Auditório do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Esse foi o último debate do seminário 90 anos da Semana de Arte Moderna: debates, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). O tema da mesa era a influência dos modernistas nas políticas de preservação do patrimônio do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan).
As canções mostradas por Ikeda, segundo ele, são temas de congadas e moçambiques, festas populares do interior de Minas Gerais e São Paulo, influenciadas pela cultura dos escravos africanos que foram levados à região. “É uma prática afrocatólica brasileira. Normalmente, em 99% das vezes, quem está cantando isso é negro.” A intenção era sensibilizar o público para a discussão em torno do patrimônio imaterial, que só passou a ser objeto de políticas públicas nos anos 2000.
“Dá para perceber pela estrutura de pequenas quadras que isso é uma forma de prática sonora inclusiva, que eu nem vou chamar de artística nem de musical. O mestre puxa dois versos e o grupo responde”, explica Ikeda. “Não é música de concerto. Se não houver reciprocidade, acaba a atividade, perde-se a força.”
O professor enfatizou a importância que uma prática como essa tem para os envolvidos. “Isso também é história dessas comunidades, só que o que a gente propõe como registro do patrimônio histórico imaterial não conhece essa história”, criticou, emocionado, o etnomusicólogo. “Para os burocratas do Iphan e para o Mário de Andrade, isso era música popular brasileira, era folclore. Não levavam em consideração essa essência.”
O caráter histórico é um ponto importante na trajetória modernista dentro das políticas de patrimônio. Ikeda falou sobre a diferença entre o anteprojeto de política cultural de Mário de Andrade e o que foi realmente feito: o modernista considerava criar o Span: Serviço do Patrimônio Artístico Nacional – o critério era, portanto, estético. Já em 1937, foi criado o Sphan (primeiro nome do Iphan): o “h” adicionado significa “histórico” – ou seja, o valor para a posteridade passou a ser levado em conta.
No entanto, o professor ressalta que a questão estética ainda se sobrepõe à histórica. “Se tivessem adotado esse outro critério, podiam deixar também um quarteirão da Favela do Buraco Quente, para mostrar o gênio que é um indivíduo que faz uma casa de três andares e aquilo não cai.”
Ikeda também questiona os prêmios dados pelo Ministério da Cultura. Segundo ele, há muito mais interesse político e midiático numa iniciativa como essa do que propriamente cultural. “O que é R$ 10 mil para um grupo que tem 40 pessoas, 30 instrumentos, sem contar fardamento e roupa que vai precisar para aquela comunidade? Absolutamente nada.”
O professor ainda afirma que a visão de história de políticas desse tipo é completamente arbitrária. “Dificilmente a gente vai conseguir fazer a valorização do patrimônio imaterial nesses moldes reducionistas filosófico-ideológicos. É melhor que não se faça”, conclui o professor.
Patrimônio material e Revista do Iphan
O debate, mediado pela professora Ana Paula Cavalcanti Simioni (IEB-USP), também contou com a presença de Márcia Chuva, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Silvana Rubino, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Márcia falou sobre a influência do modernismo nas políticas do Iphan relacionadas ao patrimônio material. Novamente, o critério estético é valorizado. “Foram princípios estéticos, apoiados numa ideia de beleza arquitetônica determinada pela harmonia de estilo e pela funcionalidade da arquitetura que determinaram a construção do patrimônio histórico e artístico no Brasil.”
Segundo a professora, “esses princípios eram definidos pelos arquitetos do Iphan ligados ao modernismo, dando uma direção que determinava os bens a serem selecionados e as formas a serem assumidas quando restauradas”.
Já Silvana se dedicou a explorar a presença do modernismo no Iphan através da análise da revista do Instituto, que ela chama de “patrimônio intelectual” do Instituto. A pesquisadora destaca a participação de Rodrigo Melo Franco de Andrade, que comandou o órgão de 1937 até 1967.
Ele foi responsável por tentar definir uma linha mais objetiva e sistemática na publicação, seguindo as ideias de Mário de Andrade, que considerava que a valorização do caráter histórico se dava pela pobreza artística existente em São Paulo.
“A revista é um dos pontos do Iphan. Ela agrega tradição e modernidade, mas traz também patriotismo modernismo, patriotismo científico, ensaio e história. De certa maneira, ela não cumpre o programa do Rodrigo, porque abriga todo o gênero literário e o estilo de instituto histórico, que ele tentava combater”, conclui Silvana.