São Paulo (AUN - USP) - Acompanhamento psicológico recebido pelo doador de fígado é insuficiente e muitas vezes nem chega a acontecer. É o que mostra pesquisa do Instituto de Psicologia (IP) da USP “O doador acaba recebendo menos atenção porque é visto como alguém saudável, então os cuidados acabam se concentrando em quem vai ser transplantado”, diz o psicólogo Rodrigo Guilhen e Silva, que entrevistou para seu trabalho de mestrado sete pessoas que doaram uma parte de seus fígados. A maioria dos entrevistados se queixou da falta de apoio e suporte psicológico durante o processo, que é muito doloroso fisicamente e mentalmente.
Silva também entrevistou o cirurgião Silvano Raia, do Hospital das Clínicas, que participou da primeira cirurgia de transplante hepático com doador vivo, em 1988. O novo procedimento foi adotado ao redor do mundo e ajudou na redução das filas de espera.
O que ele destaca dentro da equipe média é o dilema que os médicos também vivem ao realizarem o transplante. “A equipe médica tem que lidar com a família do paciente que está doente, que quer vê-lo melhor e pressiona os médicos para que façam tudo o que for possível.” Ao mesmo tempo, o pesquisador destaca, um indivíduo saudável vai ser submetido à uma cirurgia grave e poderá sofrer com as consequências deste ato. “Não é uma escolha fácil pra ninguém, nem para a equipe médica. Por isso, um psicólogo dentro da equipe multidisciplinar é fundamental.”
Alguns dados citados por Silva impressionam: 30% dos doadores têm complicações menores, 10% têm complicações maiores e 1% vêm ao óbito. “Podemos dizer que a cada 100 doadores, um morre. Isso é muito, principalmente se considerarmos que eram pessoas saudáveis.” Por esse motivo, ele diz que o doador tem que refletir muito sobre sua decisão de doar.
O que ficou claro é que apesar da decisão de doar acontecer por livre e espontânea vontade, e na maioria das vezes já estar tomada antes mesmo do receptor precisar pedir ou de uma primeira conversa com o médico responsável pelo procedimento, todos os entrevistados sofreram algum tipo pressão, seja essa gerada por meio de uma reflexão ética ou até mesmo a partir de valores morais. “Quando existe relação de parentesco, percebeu-se que os sujeitos se sentiram incumbidos de doar, porque são seus parentes que precisam de ajuda.”
O psicólogo relata a impressão geral que tirou das entrevistas: “O que eu senti é que aqueles momentos serviram como um desabafo. Eles precisavam de alguém que os ouvisse e os compreendesse. Esse é um momento essencial e precisa ser feito antes da cirurgia e ao longo de todo o pós-operatório”.
Apesar dessa pressão, a decisão do doador é legítima, tanto se positiva para a realização do transplante, quanto negativa. A presença de um profissional pode ajudar essas pessoas a lidarem com suas dúvidas e as fazerem refletir. Elas não têm de doar porque se sentem pressionadas, mas porque entendem que essa é a melhor decisão a ser tomada. Quando o fazem por pressão, podem se decepcionar depois.
Na lista de decepções está a falta de reconhecimento posterior por parte da família. Os doadores esperam que sua relação com o parente que recebeu o órgão melhore, mas, muitas vezes, essa melhora não vem na proporção que ele esperava e isso causa desapontamento. Além disso, acrescenta-se a dor do pós-operatório e possíveis complicações decorrentes da cirurgia como desafios a serem enfrentados pelo doador, e por isso a necessidade de uma estrutura psíquica forte.
Apesar desta série de desafios, em nenhum dos relatos constatou-se a presença de arrependimento. O que se percebe nos discursos são sugestões de métodos e procedimentos que podem fazer com que todo o processo se torne menos traumático. Em alguns dos casos, surgem inclusive relatos de melhora na autoestima do doador, que depois de passar por todos os obstáculos começa a se sentir uma pessoa melhor para enfrentar o mundo.
Há sempre um conflito interno porque o potencial doador tem de escolher entre arriscar a vida e passar por um procedimento doloroso ou ter de conviver com o fato de não ter ajudado um parente próximo. Dada a complexidade da situação é indispensável que todos que estão envolvidos no procedimento recebam um acompanhamento.
Para Silva, o grande propósito da pesquisa é a necessidade da formulação de um protocolo de avaliação e acompanhamento psicológico para este tipo de transplante, que ainda não existe, mas é plenamente executável. “Meu intuito não é criticar, mas aprimorar a maneira como se realizam as cirurgias de transplante hepático com doador vivo atualmente”, conclui ele.