São Paulo (AUN - USP) - O número de denúncias de abuso sexual infligido a menores é grande no Brasil. Mas a situação é ainda mais grave uma vez que em boa parte dos casos, apenas a vítima e o agressor sabem o que está acontecendo. Com o intuito de facilitar o reconhecimento de abuso durante as entrevistas que antecedem o julgamento, a psicóloga Eliane Scherb, em sua tese de doutorado defendida recentemente no Instituto de Psicologia da USP, analisou casos de crianças molestadas e detectou os sintomas recorrentes.
Algumas das características que compõem o quadro conhecido como estresse traumático são, a curto prazo, a fixação da libido ou do instinto de morte, alterações de memória e de afetividade, dificuldades ou bloqueio de aprendizagem, aumento da ansiedade, queda da atenção e dificuldades de adaptação social. Essa criança terá, conseqüentemente, dificuldades em desenvolver conteúdos como corpo, idade e laços de parentesco de maneira adequada e condizente com sua faixa etária.
Além disso, o trauma sofrido pode interferir na formação do indivíduo a longo prazo, uma vez que é durante a infância que se dão os processos de delimitação da personalidade. O indivíduo abusado pode tornar-se um adulto esquivo, com sensação de inadequação e bloqueios afetivos. Ocorre ainda a recusa persistente dos conteúdos perturbadores, que podem tornar-se, para ele, um interdito, impossibilitando a integração dos diferentes níveis de sua personalidade
Um dos maiores entraves ao processo de incriminação é a dificuldade de provar o ocorrido. Em apenas cerca de 2% dos casos há ocorrência de lesão física e mesmo essas são de difícil identificação. Dessa maneira, torna-se fundamental o depoimento da criança, que é posto em relevo na pesquisa de Scherb. Deve-se considerar, ainda, a dificuldade da própria criança em identificar a situação como agressão, porque o abuso se dá em um campo de ambigüidade, envolvendo sedução e manipulação. Outro fator que dificulta o processo é que na maior parte dos casos, a criança sofre pressão familiar para não falar, uma vez que as famílias tentam evitar a exposição de seus problemas, suas negligências e culpas. Por outro lado, há também um grande afluxo de denúncias falsas – segundo Scherb, é comum que mães induzam os filhos a incriminar o pai em caso de divórcio ou qualquer outro em que a mulher se sinta frustrada com o marido.
Em seu estudo, Scherb analisou o caso de cinco crianças (dois meninos e três meninas), com idades entre 4 e 12 anos, que sofreram abuso dentro de casa. A psicóloga utilizou-se de métodos envolvendo testes, desenhos e entrevistas, que funcionam como estímulos para a interação e, através deles percebeu grandes dificuldades de expressão nas crianças abusadas. Quando, porém, se efetivava alguma forma de comunicação, elas expressavam medos e fantasias associados a perdas e conteúdos mórbidos, como idéias de deterioração do corpo). O comportamento não verbal era também analisado, através de interação grupal e posicionamento individual.
As ocorrências de abuso sexual são, no entender de muitos psicólogos, apenas mais um sintoma presente em casos de famílias disfuncionais e incestogênicas. São casos em que as funções dos membros da família não são claras, não há uma delimitação dos limites entre adultos e crianças e denotam também abuso de autoridade e violência doméstica.Na maioria absoluta dos casos o abuso se dá em casa, sendo o agressor um parente próximo ou padrasto. A negligência materna conta como um facilitador: embora saibam ou a menos desconfiem do que está acontecendo, algumas mães evitam o problema. O abuso é também desigual entre os sexos: a cada quatro meninas, um menino é notificado.
Uma vez feita a denúncia – é comum que as suspeitas partam da escola – o caso percorre um longo caminho: da delegacia para o conselho tutelar,o juizado e, finalmente, a promotoria. Os procedimentos envolvem verificações, relatórios, visitas de assistentes sociais e, em parte dos casos, a criança é afastada para um abrigo. Esse processo pode significar um segundo trauma para a criança, em parte devido ao despreparo dos juízes e promotores. Scherb, que trabalha como psicóloga no Ministério Público ressalta que lá não existe a tradição de trabalhar com psicólogos e, desta forma, torna-se difícil estabelecer os limites de cada função. Muitas vezes, os psicólogos são tomados instrumentalmente como mediadores durante a investigação: seus pareceres apenas endossam os processos e suas indicações não são levadas adiante.
A dificuldade do tratamento, que deve se estender à família, é agravada pela falta de instituições que prestam atendimento e a má distribuição dos postos existentes, o que dificulta o acesso a esses serviços, principalmente para moradores da periferia. Assim, o tratamento costuma se restringir a um período pequeno e revela-se ineficaz. Scherb ressalta, portanto, a necessidade de um serviço continuado e aprofundado, a única maneira de resolver o problema das crianças violentadas.