São Paulo (AUN - USP) - A obstetriz Mariane de Oliveira Menezes observou, em sua pesquisa de mestrado, a experiência de mulheres guarani-mbyá durante a gestação e o parto na periferia da cidade de São Paulo. Ciente da necessidade cada vez mais evidente de humanização das práticas médicas de assistência ao parto, Mariane observou, em seu trabalho, uma carência pela inserção do aspecto cultural nas diversas etapas do atendimento médico a gestantes.
Formada em obstetrícia pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Mariane conta que muitas vezes esteve em contato, durante a graduação, com a temática da diversidade cultural. Nesse período, envolveu-se em uma pesquisa sobre pré-natal e parto de moradoras da zona leste de São Paulo. Em seguida, durante o estágio, teve a oportunidade de acompanhar o trabalho de parto de uma mulher boliviana, experiência fundamental para que compreendesse aspectos que posteriormente definiriam o assunto de sua dissertação de mestrado. Ela relata que a parturiente apresentou comportamentos “diferentes” desde o primeiro contato: “Ela permaneceu de pé mesmo antes que eu explicasse as diversas possibilidades de posições (em geral as mulheres iam direto para a cama), pediu para eu não costurar uma pequena laceração que teve (e que não tinha necessidade pelo tamanho, sangramento e formato), e, no final, requisitou levar a placenta de volta para casa, o que, infelizmente, foi negado pelos funcionários da maternidade”.
A partir dessa e de outras experiências com pessoas de origens e formações culturais diversas, a pesquisadora conta que passou a se questionar a respeito da atenção à gestação e ao parto de mulheres indígenas no contexto das periferias de São Paulo. Durante o mestrado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), realizou uma pesquisa qualitativa a partir da observação participante e de entrevistas com mulheres de uma comunidade indígena guarani-mbyá, situada na região noroeste da cidade.
A pesquisadora explica que o parto e o nascimento são processos fisiológicos que, no entanto, possuem uma linguagem cultural. “O parto em si é um processo fisiológico: atuação hormonal, contrações que ficam ritmadas, colo uterino dilata, insinuação, descida, rotação, entre outros fenômenos.”, afirma. Apesar disso, é permeado por uma linguagem cultural, já que cada grupo tem uma visão própria e um conjunto de rituais específicos referentes a esse processo. “Muito é comentado sobre o aspecto ritualístico do parto de algumas etnias indígenas, como o parto cócoras, o uso de chás específicos, rezas, cachimbos, cuidados com o coto umbilical, e quando se comenta isso se dá a entender que em um contexto hospitalar, por exemplo, o parto estaria isento de ações ritualísticas”, explica a pesquisadora. Tal fato pode ser explicado por um fenômeno de naturalização do processo de hospitalização do parto. Embora hoje pareça natural que o lugar do nascimento seja o hospital, até o começo do século 19 os partos eram realizados quase exclusivamente em ambiente domiciliar. Mariane identifica a realidade atual da atenção ao parto com um “modelo biomédico tecnocrático”, no qual o corpo feminino é interpretado como “fundamentalmente defeituoso” e requer intervenções.
Mariane ressalta a importância da interculturalidade na assistência ao parto para a democratização do acesso à saúde. “Para uma parturiente, esse tipo atendimento garante o direito básico de ter o controle sobre o que é realizado com o seu corpo, com o corpo do seu bebê e com a placenta.”