São Paulo (AUN - USP) - Os jogos de azar acompanham a humanidade há séculos, de forma legal ou ilegal. Na atualidade, apresentam um caráter dúbio, ora atuando em favor do governo e da sociedade, como nas loterias e bingos que recolhem fundos para os esportes nacionais, ora de forma ilegal, financiando máfias e traficantes. Mas a análise do jogo apenas pelo viés dos recursos gerados em suas atividades é incompleta e desconsidera uma parcela pequena, mas importante, da população, daqueles que jogam de forma compulsiva, chamados de jogadores patológicos.
Nos EUA, essas pessoas representam de 1% a 4% da população geral, de acordo com dados de 1997, ou seja, de 2,5 a 10 milhões de pessoas. Na população brasileira, a incidência deste mal é desconhecida, mas alguns estudiosos vêm alertando para o aumento desta população após a expansão das casas de jogos e dos jogos eletrônicos. A associação entre a instalação de casas de jogo ou a maior disponibilidade de jogos de azar e o aumento da incidência do jogo patológico na população é amplamente difundido na literatura mundial.
As pesquisas na área reconheceram um padrão para o jogador típico: homem, caucasiano, com o segundo grau completo, aproximadamente 30 anos, casado, com filhos e baixa renda. No Brasil, os estudos nesse sentido indicam um quadro próximo, constituído de homens, católicos, com segundo grau completo ou nível superior e com idade média de 40 anos.
O jogo como doença
Na literatura médica, o jogo patológico é considerado como doença desde 1980, e atualmente é classificado como "transtorno do controle dos impulsos não classificados em outro local" ou como "transtorno de hábitos e impulsos", dependendo da referência bibliográfica utilizada.
Atualmente é definido como um comportamento de jogo mal-adaptativo, persistente e recorrente, mas, apesar de seu reconhecimento, foi apenas no final dos anos 90 que foram estruturados os primeiros ambulatórios específicos para o tratamento de pessoas com o diagnóstico de jogo patológico no país. Em São Paulo foram fundados o Ambulatório do Jogo Patológico e Outros Transtornos do Impulso (AMJO), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e o ambulatório de jogo do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD), do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Um terceiro ambulatório, em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) iniciou atividades, mas não desenvolve mais estudos especificamente nesta população.
A pesquisa
Através do ambulatório da FMUSP o doutorando Daniel Moreira iniciou um estudo que resultou em sua tese, com o título bem direto de Jogo Patológico. Seu trabalho tinha como objetivo geral estudar características específicas de jogadores patológicos com enfoque em aspectos neuropsicológicos, traços de personalidade e estruturas cerebrais associadas ao comportamento patológico, com isso verificando a utilidade de diferentes medidas de personalidade para melhor caracterizar o fenômeno estudado.
Durante suas pesquisas, avaliou, em dois estudos, 50 jogadores patológicos e 50 controles normais, pareados por sexo, idade e anos de escolaridade formal. Para compreender os diferentes aspectos do tema, trabalhou com uma bateria de testes neuropsicológicos para avaliar funções atencionais e executivas do cérebro, avaliou a personalidade através de inventários de auto-preenchimento desenvolvidos a partir de diferentes referenciais teóricos e analisou as estruturas cerebrais através de dados de neuroimagem, obtidos através de exames de ressonância magnética e analisados através do método automático de morfometria baseada no voxel (MVB).
Em sua tese, Moreira frisa que os benefícios dos exames por neuroimagem em diagnósticos que indicam transtornos mentais têm trazido esclarecimento sobre as relações entre cérebro e comportamento, posto que essas técnicas permitem que se estabeleça uma série de ligações possíveis entre tais transtornos e mudanças orgânicas, no caso ocorridas no cérebro dos pacientes. Não se trata porém de reduzir os comportamentos a reflexos de um estado do organismo, mas de corroborar a integração dos aspectos psicológicos e biológicos dos processos mentais.
Os resultados
Ao analisar a avaliação da personalidade dos jogadores estudados, Moreira notou que apresentaram pontuação significativamente maior na maior parte das escalas que avaliavam traços de personalidade impulsiva. Tal resultado coincide com os achados da literatura médica, que associam ao jogo patológico uma maior expressão de impulsividade. Foi encontrada também uma ampla gama de manifestações de traços de personalidade impulsiva, devida ao fato da impulsividade ter sido avaliada através de diferentes referenciais teóricos. Havia ainda a indicação de um quadro de traços de personalidade compulsiva exacerbados.
Através do uso de ressonância magnética ficou indicado que jogadores patológicos apresentam falhas das "circuitarias cerebrais" implicadas na regulação do comportamento. Foram identificados também prejuízos de funções de lobo frontal, sobretudo as funções executivas.
Percebeu ainda, considerando aspectos neurofuncionais e neuroanatômicos, que o jogo patológico tem um comportamento que tende mais ao das dependências químicas do que ao de patologias como o transtorno obsessivo compulsivo, além de representar um modelo natural único para o estudo de fatores que predispõe os indivíduos a comportamentos diferentes daqueles vinculados a sua constituição básica.
O autor ressalta que este trabalho traz correlatos psicobiológicos da dependência que contribuem, junto ao estudo da ocorrência de fenômenos impulsivos, de alterações das funções neuropsicológicas, e de alterações nas porções cerebrais implicadas na regulação do comportamento, com seu objetivo de caracterizar melhor e servir de futura referência ao tratamento do jogo patológico.
Mais informações:
http://www.usp.br/fmusp