Em meio a grandes paredões de arenito e vegetação preservada de caatinga, uma espécie de ave pouco conhecida no Brasil e no mundo chamou a atenção da bióloga Erica Pacifico. Especializada em manejo de animais em cativeiro e animais silvestres, Erica viajou até a Estação Biológica de Canudos, no norte da Bahia, a fim de estudar a biologia reprodutiva da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie em perigo de extinção, segundo critérios internacionais.
Diferentemente das outras espécies de araras-azuis que ocorrem no Brasil, como a do Pantanal, a arara-azul-de-lear possui hábitos específicos atrelados ao seu habitat. Os únicos sítios reprodutivos destas aves são os paredões encontrados na região do norte da Bahia, que podem chegar até 100 metros de altura. Segundo a bióloga, além de não haver estudos sobre os comportamentos reprodutivos, a necessidade de avaliação do estado de conservação da espécie também motivou seus estudos, uma vez que as estimativas do tamanho da população podem sugerir o real grau de ameaça da arara e incentivar políticas de proteção mais rigorosas.
Histórico de conservação
Descrita como espécie em 1856, a arara-azul-de-lear só teve sua primeira população descoberta em 1978 na região do Raso da Catarina, no norte da Bahia. Na ocasião, foram encontrados apenas 60 indivíduos e os próprios moradores locais apontavam a dificuldade de se avistar as araras na área, o que demonstra que a população já estava em declínio antes de ser registrada. No final da década de 80, a ONG Fundação Biodiversitas adquiriu áreas particulares de caatinga na região de Canudos e, em 1992, foi criada a Estação Biológica, com patrocínio do Fundo Judith Hart, do America Bird Conservancy e da Fundação Grupo o Boticário de Proteção à Natureza. Com o objetivo de proteger os dormitórios e sítios reprodutivos das araras, hoje esta área encontra-se em processo de criação de Reserva Particular do Patrimônio Natural.
Casal de araras-azuis na entrada de seus ninhos. (Reprodução: Reprodução: Canal Ciência - Ibict)
Erica comenta que dos anos 2000 até os dias de hoje, houve um aumento de cerca de 400 para cerca de mil indivíduos nos dormitórios de araras localizados nas regiões de Canudos e Raso da Catarina, segundo dados do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave), gerido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Porém, em regiões onde as aves não foram protegidas, a população desapareceu. A localidade do Boqueirão da Onça, no município de Campo Formoso, a oeste de Canudos, por exemplo, contava com cerca de 30 araras, mas hoje existem apenas duas. Neste mesmo local, há a mais de uma década a tentativa de criação de um parque nacional, que ainda está em trâmite. Para a pesquisadora, a reintrodução de espécimes nascidos em cativeiro no Boqueirão da Onça é benéfica. Porém, é necessário proteger a área da ação de traficantes.
O tráfico de animais silvestres e a biopirataria ainda são motivos de preocupação para a conservação da arara-azul-de-lear na natureza. “Ainda existe o contrabando de filhotes, mas não se sabe de onde são retirados estes animais”, diz a bióloga, que acredita que estes não são provenientes tanto dos ninhos estudados quanto de outros ninhos da reserva, nos quais não é possível o acesso. É possível que as araras estejam reproduzindo-se em outros locais ainda não catalogados e, assim, a pesquisa deve continuar na ampliação do conhecimento dos hábitos da espécie. Atualmente, Erica está nos Estados Unidos para a continuação da pesquisa com a arara-azul-de-lear, através do estudo da genética de sua população em natureza.
Trabalho de campo
Os pesquisadores só conseguem acessar os ninhos por meio de rapel. Na imagem, a dupla desce os paredões rochosos da Estação Biológica de Canudos. (Reprodução: Canal Ciência - Ibict)
O acompanhamento feito pela bióloga envolveu a coleta de dados das taxas reprodutivas e do desenvolvimento dos filhotes na visita regular dos ninhos, através do uso do rapel. De dezembro a janeiro, acontece a postura dos ovos e neste período, é feita a ovoscopia. Erica explica que através desta técnica é possível “verificar o embrião dentro do ovo, como se fosse um ultrassom”, a fim de registrar o sucesso da fecundação. Após o nascimento, é feito um acompanhamento individual dos filhotes, através da coleta de sangue e plumagem, medições e registro fotográfico.
O código de identificação da anilha metálica permite aos pesquisadores, no futuro, consultar uma base de dados de cada ave e traçar perfis de comportamento e reprodução. (Reprodução: Canal Ciência - Ibict)
No final do desenvolvimento do filhote, é feita a colocação de microchips e de anilhas nas patas das aves, cedidos pelo ICMBio para cadastro em um banco de dados nacional. Caso haja uma reavistamento destas araras, será possível saber seu local de procedência, o que possibilita o estudo da distância que as araras percorrem dos ninhos até as áreas de alimentação, pois são animais de território amplo. Erica destaca também que ao rever novamente um espécime anilhado perto dos paredões, “uma pergunta que pode ser respondida pelo anilhamento é o tempo de maturidade sexual das aves”, afirma. “Se anilhadas nos sítios reprodutivos, esperamos que, em algum momento, estas aves entrem na maturidade sexual e comecem a querer reproduzir-se.”