O envelhecimento inexorável inerente à condição humana é algo temeroso para todas as camadas da sociedade. Quando a realidade bate à porta, fatores como o lugar onde estamos, as condições de vida, a presença familiar e a frequência médica, influenciam as nossas perspectivas e sentimentos. E é um pouco sobre isso que a professora Andréa Viude e seu grupo de pesquisa “memória coletiva, discursividades e dinâmicas comunitárias” buscou nas prisões femininas da cidade de São Paulo.
“Pedimos a SAP, Secretaria de Administração Penitenciária, para que pudéssemos ter acesso às mulheres idosas, ou seja, acima de 60 anos”, explica a professora, que buscava trabalhar com as presidiárias a perspectiva de estar velha dentro no sistema prisional. Após cinco meses de espera pela resposta da SAP, o número foi levantado e, nas três penitenciárias escolhidas, apenas 17 mulheres foram encontradas. O que significa que o grande contingente de presidiárias é formado por jovens.
O envelhecimento prisional feminino foi estudado na Penitenciária Feminina de Sant’ana (Carandiru), na Penitenciária Dra. Maria Cardoso de Oliveira (Raposo Tavares) e no centro de detenção provisória de Pinheiros. (Foto: reprodução)
Uma coisa é você ver na literatura e nas reportagens as condições de vida, e ainda geralmente dos homens, da população carcerária. Outra é estar inserido nesse ambiente. Andréa conta que, no quesito do curso de envelhecer, o impacto foi tão grande que ela pediu autorização para entrevistar mulheres acima de 45 anos. “Precisávamos ver, efetivamente, como era ficar velha, e não apenas, como era estar velha lá dentro”.
No total, foram entrevistadas cerca de 50 mulheres, sendo que dessas, 17 tinham 60 anos ou mais. Segundo a professora, existia um número bem maior de mulheres na idade da pesquisa, mas apenas as que aceitaram participar da conversa e aquelas que o próprio presídio não vetou a participação, por punições ou outras medidas, fizeram parte da entrevista.
Através da análise de discursos, a pesquisa procurou sentidos que muitas vezes não foram explicitamente proferidos. Andréa fala sobre a busca do discurso que não aparece, “porque o sistema mostra o discurso do bandido, da periculosidade, e não de quem está ali cometendo um ato infracional”. E se de um lado, há o sistema que oprimi, lembrando o tempo todo o motivo que as levou a perder sua liberdade constitucional. Por outro, elas são mulheres, e da mesma forma que aquelas que estão fora da prisão, elas também querem pintar os cabelos, fazer as unhas. “Tem horários, celas que servem como o lugar pra pintar o cabelo e pra fazer manicure, e quanto custa”, ressalta a professora.
Questões de gênero
E é aí que entra algumas questões: existe um sistema que não dá conta da diversidade, entre mulheres e homens, e também, existe um universo, dentro do sistema penitenciário feminino, de solidão e abandono pelas famílias. A realidade das presidiárias é oposta ao que ocorre nas prisões masculinas. As lutas pelas visitas íntimas, não fazer greve em dia de visita e ter certeza que a esposa e filhos estarão lá, não acontece para as mulheres.
Ou seja, não é apenas o sistema que leva o envelhecimento dentro das prisões por um caminho diferente, existe um discurso dentro da sociedade que não aceita a mulher que se envolveu com a bandidagem. Ficar anos sem receber visita e não ser mais capaz de reconhecer os filhos, são fatores que faz com que a mulher acabe criando vínculos de dependência com colegas de cela, ou com “um sistema paralelo, que já está bem forte dentro dos presídios femininos, que é o Primeiro Comando da Capital (PCC)”, explica a professora. Daí se ganha o dinheiro para o embelezamento, que não vem mais dos parentes.
Existem também, aquelas que proíbem suas famílias de irem visitá-las, porque não querem que seus familiares a vejam naquele ambiente. Outra diferenciação marcante em relação aos homens. “Esse papel de mulher-mãe se apresenta em diferentes situações, porém com resultados completamente distintos”, analisa a pesquisadora. A mãe que leva seu filho para ver o marido no presídio, está reforçando a família independente do cenário. Mas essa mesma mulher é tão forte a ponto de dizer para seus filhos não irem lá. Porque ela tem a intenção de preservar aquilo que ela acredita que é família.
“Ela leva o discurso da mulher bandida, presa, enclausurada. Mesmo que ela não tenha consciência disso”, explica a professora. Elas acreditam que o que fizeram estragou sua família, então não há necessidade de irem visitá-la. “A mãe é o modelo no discurso da nossa sociedade, e elas trazem isso de forma muito forte”, diz a professora. “A figura de mãe-forte é algo que tem chamado a atenção nos discursos, porque a única coisa que muda é o cenário, ao invés de estar em casa, ela está na prisão”. Com isso, envelhecer para quem está dentro das prisões e fora delas, só muda em relação às paredes e ao sistema em que são submetidos. “Os pensamentos e os discursos são exatamente iguais, elas trazem de fora e aquilo se perpetua lá dentro, entre elas”, segundo a professora.
Com isso, percebe-se que não há políticas penitenciárias de atenção para as mulheres que envelhecem. “Já não existe para mulher, muito menos para as que envelhecem”, ressalta a Andréa. Uma prova disso são os kits de higiene, em que mulheres que já pararam de menstruar continuam a receber absorventes, que se tornam valiosos. “Diante dessa irracionalidade do sistema, elas criam mercado”, fala a professora.
Aparecem nos discursos, também, os trâmites dos processos. Estudos já comprovaram que quando o réu é mulher, os julgamentos demoram muito mais para acontecer, se comparado aos homens. “Existem casos em que elas e os maridos são presos juntos, e, eles saem antes do que elas, que ficam até mesmo anos a mais”, exemplifica a professora. “Não por conta da penalidade que lhes é imposta, mas por causa dos benefícios em lei, que são rapidamente aplicáveis nos homens e na mulher, não”. Acredita-se que isso ocorra por conta da quantidade de pessoas já presas, para evitar motins por superlotação, por exemplo.
Envelhecimento
Os cabelos brancos e a diminuição do brilho da pele são características do envelhecimento implacável, que muitas vezes, é ignorado pela maioria das pessoas. No entanto, quando os 60 anos chega e traz consigo a categoria de “idoso” definido pela Organização Mundial da Saúde em países subdesenvolvidos, as coisas mudam.
A perspectiva de encontrar trabalho é um dos pontos de preocupação, assim como a recepção da família e sociedade. As mulheres com penas menores são mais positivas, mas aquelas com tempo de punição mais longo causam preocupações do ponto de vista gerontológico, porque elas vão sair um dia. “Quanto mais tempo ficar na cadeia, menor é a minha chance aqui lá fora”, explica a professora. “Elas não terão aposentadoria, carreira, estarão velhas para o trabalho e não serão reconhecidas pelos filhos”.
Liberdade
“A comida é difícil de engolir, o banho gelado é duro de aguentar, o ambiente fétido é horrível, a falta de colegas, ausência da família, tudo é muito difícil”, fala Andrea parafraseando os discursos. “O pior dos cenários é não poder ir e vir”. A pena já foi imposta – 4 anos de reclusão ou 30 anos de reclusão, por exemplo – mas, comida estragada, roupa suja, não ter condições de manter sua higiene pessoal e senhoras de 70 anos tomando banho gelado, não está. Muitas presas não saem nem das suas celas para não arrumar confusão, e poder sair de lá o mais rápido possível.
Andréa conta que não pediu classificação por raça e nem por formação para a pesquisa, estavam todas convidadas a participar. Todas possuíam apenas o nível primário e, às vezes, nem isso. “Quem está no sistema prisional é quem já foi excluído muito antes pelas politicas públicas”, conclui a professora.