O último grande achado brasileiro no campo dos estudos comportamentais animais, a etologia, foi a descrição do uso por macacos-pregos de ferramentas, em diferentes regiões do interior do país. Os relatos de grupos que utilizam pedras para quebrar cocos e galhos na procura de alimentos no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo, e na Serra da Capivara, no Piauí, foram apresentados na palestra “Uso de ferramentas e tradições comportamentais em primatas não-humanos”, no Instituto de Biociências.
Apresentada pelo professor Eduardo Ottoni, do Instituto de Psicologia da USP, a discussão sobre os aspectos cognitivos de animais foi levantada através das principais hipóteses levantadas pelo projeto EthoCebus, que pesquisa o comportamento e ecologia do macacos-prego (Cebus libidinosus). Ao estudar a interdependência de habitat, comportamento e transmissão de informação, o professor relaciona o uso de ferramentas a aspectos sociais e aos locais de distribuição da espécie, especialmente através da influência do bioma Cerrado nos processos de instrumentalização de objetos.
Entre o natural e o social
A região da Serra da Capivara apresenta disponibilidade de seixos soltos e de fácil acesso pelos macacos e maior presença de hábitos terrestres, o que relaciona o uso de ferramentas à construção de nicho ecológico, entendido como funções desempenhadas por determinada espécie em seu habitat. Além disso, nas populações estudadas, “o uso de ferramentas é mais frequente quando há mais comida variada do que quando só há coco, ou seja, os macacos quebram mais por possibilidade do que por necessidade”, afirma Ottoni.
Nas imagens gravadas na Serra da Capivara pela equipe do Laboratório de Etologia do IP/USP, macacos-prego utilizam desde pedras para quebrar cocos até varetas na busca de alimentos. (Reprodução: Revista Veja.com)
Por um viés etológico, seria possível que as condições sociais de grupos numerosos e que seguem uma ordem social rígida também sejam responsáveis pela transmissão destes comportamentos. Ao discutir a aplicação de elementos da antropologia no estudos de animais não-humanos, o professor questiona: “Podemos chamar estas tradições comportamentais de cultura ou não?”. Diferentes pesquisas verificam que não é preciso mecanismos sofisticados de cognição, como os exclusivos aos humanos, para reprodução de comportamentos complexos passados entre os indivíduos de uma população. Ao apresentar uma definição holística muito ulizada por antropólogos, Ottoni aponta que o conceito de cultura engloba a ideia de linguagem, tópico no qual não há consenso entre especialistas em sua presença em determinadas espécies.
Para ele, o conceito de cultura humano não se aplica aos primatas como mecanismo de transmissão social de informação. Nesse sentido, é discutido se haveria algo paralelo à genética para explicar tais mecanismos. “Existe toda uma gama de aprendizagem social que é transmitida transgeracionalmente baseada na observação de comportamentos”, diz o professor, ao propor que, assim como os genes, é possível explicar através um modelo que trabalha com vias de informação passadas por aprendizagem social.
Ao contrário de uma visão “genocêntrica da evolução”, segundo Ottoni, “não só os genes determinam as capacidades cognitivas, portanto, as possibilidades culturais modificam a seleção natural que os afeta”. No caso dos macacos-prego, a presença de sítios de quebra, por exemplo, chama a atenção dos indivíduos jovens e o barulho das pedras ao bater os atrai para a observação. Como é observado o uso de ferramentas por grupos de diferentes localidades, o pesquisador adverte que “o fato de que todas as populações façam a mesma coisa não prova que estas características são aprendidas socialmente”.
Uso de ferrementas por animais
Como ferramenta, é entendido o objeto utilizado com o fim de alterar outro objeto e este conceito foi largamente utilizado no passado como “máxima da hominização”, ou seja, o uso de ferramentas é a principal característica do ser humano. O principal registro do uso na natureza vem dos grandes primatas, como o gorila, orangotangos e chimpanzés, tendo esta última espécie seus estudos mais importantes feitos pela primatóloga Jane Goodall a partir de 1960. Porém, foi verificado também que outros mamíferos, como lontras e golfinhos, e até mesmo aves e moluscos utilizam galhos, pedras e conchas na realização de tarefas. Segundo Eduardo, no caso dos macacos-prego, não há na bibliografia nenhuma referência ao uso ferramentas por grupos desta espécie nas florestas Atlântica e Amazônica. Porém, a pesquisa em áreas de Cerrado ainda não havia sido feita.
Com a ajuda de um seixo e de uma superfícia de apoio (rocha ou tronco), os macacos esmagam sementes e frutos rígidos, principalmente pequenos cocos de palmeiras. O uso de tal técnica não é simples: os animais demoram, em média, três anos para aperfeiçoarem-se. Além disso, o professor explica que as condições de aprendizagem de pedras como ferramentas seguem uma determinada hierarquia social. Em especial os machos dominantes, os macacos-prego mais velhos são os mais eficazes na quebra e também os mais tolerantes na aproximação e roubo de alimentos pelos mais jovens, o que possibilita que estes observem por mais tempo a atividade.
É relatado que estes animais também utilizam de varetas e pequenos galhos como ferramentas de sonda, ao escavar o solo na procura de raízes e investigação de fissuras nas rochas para encontrar pequenos animais. Eduardo comenta que, ao confecionar seus próprios utensílios, estes primatas demonstram um contexto de uso planejado, que vai além da simples inventividade momentânea. Além destes comportamentos, em período fértil, as fêmeas lançam pedras aos machos propositalmente, a fim de mostrar receptividade, o que categoriza as pedras como “ferramentas de display sexual”.