A antropologia da ciência (ou ainda antropologia da modernidade ou antropologia da natureza) é um campo de estudos que vem crescendo muito. Ela une a análise do humano e do não-humano, e abriga uma aparente contradição: como a antropologia, disciplina que se dedica a estudar o homem e a sua cultura, pode se voltar para a natureza, domínio de outras áreas de estudo?
Quem esclarece é o professor Stelio Marras, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), e especialista no assunto: “O ponto é que não é possível fazer uma antropologia de nós, modernos, sem levar em conta as ciências. É nelas que o tempo todo mobilizamos, inventando e descobrindo, coisas e seres coisas com os quais convivemos cotidianamente. Não podemos falar da humanidade ocidental e moderna sem levar em conta o não-humano por ela mobilizada e com ela socializado”.
A antropologia da ciência quer ultrapassar a divisão da realidade entre o que é humano e social e o que é domínio das ciências naturais, sustenta o professor. “Nós queremos ultrapassar essa divisão pelo simples fato de que o real se mostra composto, e composto por agentes heterogêneos, humanos e não-humanos os mais diversos”, ele define. “Não somos de mesma natureza. Contudo, um não se explica sem o outro. Se sempre foi assim, é sobretudo agora que percebemos o esgotamento dessa divisão concebida de antemão, prematuramente”. O professor comenta que a guerra entre o naturalismo, para o qual o ser humano é apenas um caso da natureza, e o sociologismo, que entende a natureza como uma função da cultura, mostra-se cada vez mais improdutiva. Questões de ambientalismo ou de organismos geneticamente modificados, por exemplo, denunciam a necessidade de esforços interdisciplinares entre ciências naturais e ciências sociais para a compreensão dos fenômenos.
Marras conta que, ao fazer uma etnografia (pesquisa de campo dentro do laboratório), verifica-se uma constante troca entre humanos e não-humanos. Ele ensina que o que é produzido em uma pesquisa só se explica por essas trocas entre agentes heterogêneos. “É a partir dessas trocas, nas bancadas dos laboratórios, que emergem as ontologias, incluindo aí a própria ontologia do cientista.” Assim, humanos e não-humanos são aquilo que se tornam nessa experiência de negociação ontológica. “O que seria de Darwin sem a troca, o interesse apaixonado dele com as plantas e com os animais? Vou exagerar: Darwin teve que virar um pouco animal e um pouco planta para poder falar deles”.
Ao entender que humanos e não-humanos se desenvolvem juntos, os estudos científicos podem se orientar sob outra ótica. “Isso significa se livrar de algumas noções clássicas da ciência”, expõe o professor Stelio Marras, “como a de sujeito onisciente, em que se tem a ideia de que o sujeito vai descrever o mundo independente de sua relação com ele. Ficamos mais próximos das ciências contemporâneas, em que aquele que descreve não consegue se retirar da descrição. O Princípio da Incerteza de Heisenberg, por exemplo, é uma versão disso no interior da física.”
Assim, o não-humano deixa de ser considerado um objeto que está a mercê da ação humana, e o homem deixa de ser o centro da antropologia. “Nós deixamos de ter uma relação em que sujeito e objeto estão em lados opostos e descontínuos, e passamos a ter uma relação entre sujeitos. O que é não-humano passa a ser considerado sujeito também. Ele está agindo, não é mudo, não é moldável ao nosso bel prazer.” O professor faz questão de esclarecer que essa não é uma discussão de gabinete, e sim um estudo ligado ao “pragmatismo, ao modo como as coisas se dão na prática”. Recusar a oposição entre teoria e prática é outra importante conseqüência desses novos estudos.
O professor Stelio Marras ainda é o único da Universidade de São Paulo a explorar esse campo de estudos. Ele conta que começou a fazer antropologia da ciência meio sem querer: na sua dissertação de mestrado, em que falou sobre estações balneárias de antigamente, se viu na obrigação de abordar aquilo que a antropologia devia renunciar: os assuntos das ciências duras. “Eu pensei: ‘não vou conseguir descrever o que foram essas estações balneárias sem entrar nos assuntos da medicina, mas sem sociologizar, ao modo tradicional, as ciências a ela ligadas’.”. No fim das pesquisas para o mestrado, ele descobriu o francês Bruno Latour, um dos principais teóricos da antropologia da Ciência, e passou a se dedicar a esse campo de estudo.