São Paulo (AUN - USP) - Quando a mídia repercutiu a morte do economista paraibano Celso Furtado, aos 84 anos, no dia 20 último, faltou comentar mais sua obra, em especial o livro “Formação Econômica do Brasil”. Enfatizou-se a importância de suas idéias desenvolvimentistas e de distribuição mais justa de renda, mas não se explicou como as informações dos livros se relacionam com essas idéias.
Quem pode ajudar a preencher esta lacuna é o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, José Francisco de Lima Gonçalves, que ministra a disciplina de graduação “Formação Econômica e Social do Brasil”, faz da principal obra de Furtado leitura obrigatória em suas aulas e considera-se um “discípulo” do economista, que o ajudou na sua formação. Furtado foi o fundador da Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste) na década de 50 e participou dos governos Juscelino, João Goulart, Jânio Quadros e Sarney. Como curiosidade de sua vida, participou da Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial.
O livro retrata a visão econômica de alguns períodos da história para analisar criticamente as soluções que foram adotadas pelos governos brasileiros para problemas econômicos que surgiram. O intuito de Furtado é poder provar que é necessário o Brasil adotar as medidas que mais se adeqüem à sua situação sócio-histórica e política em vez de copiar modelos prontos que servem apenas à realidade dos países desenvolvidos. Furtado criticava os rumos da política econômica de Lula e recusou cargo, apesar de tê-lo apoiado.
O professor José Francisco explica que, logo no início, Furtado busca situar a formação econômica do Brasil no contexto da economia mundial desde o século XVI, no auge da expansão marítima européia entendida como uma feroz disputa entre os países ibéricos, Portugal e Espanha, e seus concorrentes/parceiros Holanda, França e Inglaterra. Nessa época, nossas estruturas econômicas, políticas e sociais funcionavam para atender a demanda do mercado europeu e o desenvolvimento econômico daqueles países.
Nessa perspectiva, Furtado compara nossa situação com as das colônias americanas “ao norte de Delaware”, cuja constituição como núcleos populacionais deu-se à margem do sistema colonial, pelo menos até o início do século XVIII. Segundo o professor José Francisco, “o contraste entre os dois tipos iluminará comparações feitas em alguns momentos críticos de nossa história, fundamentalmente na apuração do chamado ‘passivo colonial’”, sugerindo que algumas conseqüências serão refletidas dessa servidão aos interesses das metrópoles.
Em outro momento, como descreve o professor da FEA, Furtado mostra como a sucessão de ciclos econômicos no país foi construindo diferentes estruturas, que têm em comum o alto grau de dependência em relação à demanda do exterior. Ao longo da história colonial, o economista expõe, por exemplo, como se formou o “complexo econômico nordestino”, explicando como as populações do Norte se constituíram e como as minas mudaram a vida brasileira e integraram o Sul do país ao núcleo exportador.
Entretanto, da mesma forma que no ciclo que viria posteriormente, o do café, não houve alteração da estrutura fundamental da economia, pois o governo continuou nas mãos das elites exportadoras. O trabalho escravo, que predominava no ciclo da cana-de-açúcar e era bastante presente no ciclo do café nas regiões mais distantes das lavouras, que usavam o trabalho assalariado, impediu que as zonas que regrediram à subsistência, principalmente no Sul do Brasil, se integrassem ao núcleo de produção, barrando o desenvolvimento da divisão do trabalho no país.
O professor José Francisco ressalta que a explicação do atraso do Brasil em relação aos países da Europa meridional no pós-Segunda Guerra viria da análise da dificuldade que o país enfrentava no século XIX (ciclo do café). Por trás das crises financeiras, estava a dificuldade de se criar uma base de tributação que permitisse ao Estado estabilizar a moeda sem incorrer em prejuízos insuportáveis aos exportadores.
Naquela época, a política cambial era usada para manutenção dos lucros dos exportadores brasileiros. O processo, chamado de “socialização das perdas”, consistia no seguinte: primeiro, os países ricos, industriais, se estavam em crise, reduziam a quantidade de suas importações ou o preço pago pelos produtos importados, o que prejudicava os países exportadores, como o Brasil, que fornecia produtos agrícolas; para se defender da crise, a elite agro-exportadora desvalorizava a moeda, no caso, o mil-réis, fazendo com que, mesmo que o valor da saca de café, em libras, diminuísse, o cafeicultor recebesse o mesmo, quando houvesse a transformação da libra em mil-réis (por essa modificação na taxa de câmbio). Isso prejudicava o restante da população, consumidora de produtos importados que ficavam mais caros, por isso o nome “socialização das perdas”. Ao contrário, quando subia o valor do café no mercado internacional, a elite não valorizava o mil-réis, concentrando todos os lucros para ela.
Esse raciocínio, segundo o professor da FEA, foi estendido aos aspectos financeiros das relações com o exterior, pois, se o país não tem reservas para pagar seus déficits, que é quando as importações ultrapassam as exportações, a elite que governa a partir de seus interesses tenderia, da mesma forma, a desvalorizar a moeda. Isso leva a discussão à maneira por que Getúlio Vargas optou para resolver a crise de 29, em que não havia demanda estrangeira de café: o presidente comprava o excedente de café e queimava, repondo as perdas dos cafeicultores. Entende-se daí o início do processo de substituição de importações, ou seja, começar a produzir o que antes se importava.
O professor José Francisco acrescenta que Furtado estuda também o “problema da mão-de-obra”, quando da passagem total do trabalho escravo para o assalariado, e a solução de se promover a imigração subsidiada pelos estados e depois pela União. Como conseqüência, surgiu um mercado de trabalho com incorporação de áreas de subsistência em produção mercantil de alimentos, houve uma aceleração no desenvolvimento da divisão social do trabalho e da integração do Sul ao Sudeste, Nordeste e parte do Norte.
O livro “Formação Econômica do Brasil” permite, com o conhecimento de suas posições, entender as críticas que Furtado fez nos últimos tempos ao governo Lula, lamentando a falta de novas idéias para o desenvolvimento autônomo brasileiro, e visualizar a história de intervenção racional do Estado no processo de desenvolvimento, identificando erros e acertos.