A grande biodiversidade dos tripanossomas sul-americanos e africanos de animais e insetos, além de como esses tripanossomas podem ajudar a determinar a história da evolução e migração de seus hospedeiros foi tema de palestra do professor aposentado do ICB (Insituto de Ciências Biomédicas da USP), Erney Plessmann de Camargo, em evento na mesma instituição. O professor e ex-presidente do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ainda falou sobre a importância da Parasitologia Fundamental, durante muito tempo ofuscada pela Parasitologia Aplicada.
Os tripanossomas são protozoários (seres unicelulares e eucariontes) que causam diversas doenças, um exemplo é a doença de Chagas, causada pelo Trypanosoma cruzi. A carreira de Camargo começou com o estudo dessa doença, que, durante muito tempo, foi endêmica no país. Após sua aposentadoria, decidiu voltar ao estudo dos tripanosomatídeos. Só que, dessa vez, motivado pela frase do Nobel de Física de 2004, David Gross, de que “o produto mais importante da ciência é o conhecimento”, utilizou-se do ramo fundamental da parasitologia e não do aplicado. Dessa forma, o foco não era estudar as doenças que esses tripanossomas causam (como a Parasitologia Aplicada faz), mas, sim, problemas da ciência pura, como a biologia evolucionária das diferentes espécies e as relações evolutivas de cada uma com seu hospedeiro.
“O que estamos fazendo é coletar tripanossomas dos grupos mais variados de animais para fazer um estudo comparativo da sua organização genômica e, com isso, construir uma filogenia dos tripanosomatídeos”, como afirma o professor, esse é o objetivo principal da pesquisa. Para isso, tripanossomas de diversos vertebrados e insetos foram coletados. Em um primeiro momento, essa coleta se deu em alguns biomas brasileiros, como o Pantanal, a Amazônia e a Caatinga. Posteriormente, ela foi feita em alguns países andinos e nos países africanos de Madagascar, Guiné-Bissau, Moçambique e Senegal. Atualmente, o banco de dados da pesquisa conta com 2.200 culturas de tripanosomatídeos de animais silvestres, primatas, insetos, morcegos e gado equino, bovino e suíno.
A principal conclusão da pesquisa até o momento, feita a partir do estudo de comparação entre os tripanossomas de jacarés e crocodilos, é a de que esses protozoários podem servir de marcadores importantes para se conhecer a história da evolução de seus hospedeiros. De acordo com o professor, a descoberta aconteceu quando, ao estudar os tripanossomas desses animais, observou-se que a diferença genética entre eles era muito pequena comparada à distância entre o Trypanosoma cruzi, encontrado principalmente no Brasil, e o ‘brucei’, tipicamente africano. Como os locais de origem do jacaré e do crocodilo é igual ao dos tripanossomas mencionados (o primeiro na América do Sul e o segundo na África), a distância entre os genes deveria ser similar, já que, supostamente, a separação entre os tripanossomas dessas duas regiões ocorreu há 80 milhões de anos atrás, quando esses continentes se separaram.
A conclusão a que se chegou foi a de que a separação entre jacarés e crocodilos teria ocorrido em outro momento da história, muito depois desse evento. Indo de encontro a esses resultados, outros dois estudos trouxeram uma nova teoria para a divisão entre essas duas famílias de crocodilianos. Como afirma Camargo, “outros grupos também estavam estudando a evolução dos crocodilianos (ordem que inclui os crocodilos e jacarés) e chegaram a uma conclusão que casou perfeitamente com os nossos achados: os crocodilos, como os que existem na África, se originaram na Australásia há cerca de 5 milhões de anos e não há 80 milhões. Eles vieram nadando pelas ilhas até chegarem ou à África ou ao Brasil, isso não se sabe e, há cerca de 2 milhões de anos, ou eles foram do Brasil pra África ou da África para o Brasil”. Isso mostra que a separação deles é recente, tendo dois milhões de anos evolutivamente e não 80 milhões, como os tripanossomas ‘cruzi’ e ‘brucei’, por isso, a distância genética entre eles é menor. Essas novas pesquisas também demonstram como os tripanossomas são realmente excelentes demarcadores, visto que eles tem a mesma distância genética que seus hospedeiros.
Outra descoberta foi a da existência de um tripanossoma de morcego muito semelhante ao Trypanosoma cruzi - a qual foi dado o nome de Trypanosoma erneyi (em homenagem ao professor) - não só morfologicamente como também de frequência gênica. A partir desse achado, foi levantada a hipótese de que esses morcegos saíram da África (viajando de ilha em ilha) e acabaram chegando nas Américas, onde semearam o tripanossoma que viria a ser o Trypanosoma cruzi.