Estatísticas mostram que negros e pardos são a maioria da população carcerária do Brasil. Vítimas frequentes da atuação violenta dos agentes responsáveis pela segurança pública, assim como da atuação punitiva da autoridade judicial, a população negra enfrenta em seu cotidiano discriminação e preconceito, apesar de uma crescente sensibilização e adesão aos valores da igualdade e ao respeito às diferenças entre as pessoas. Isso é o que aponta a dissertação de mestrado Racismo institucional e violação de direitos humanos no sistema da segurança pública: um estudo a partir do Estatuto da Igualdade Racial, defendida por Tiago Vinícius André dos Santos na Faculdade de Direito (FD) da USP.
“As pesquisas demonstram a preferência do sistema penal pela população negra”, diz Santos. Segundo o estudo, essa seletividade, que explica em parte o padrão de violência policial contra os negros, viola radicalmente o princípio da dignidade e a exigência do reconhecimento e da garantia do direito à igualdade como pessoa. A atuação violenta da polícia é um dos fatores responsáveis pelo não exercício do direito à segurança e acaba por comprometer também o direito à vida, à saúde e à honra.
Discriminação direta e indireta
Até 1988, ano em que foi promulgada a Constituição Federal, a discriminação racial era considerada uma contravenção penal (delito de menor gravidade). A partir de então, o Art. 5º, inciso XLII, da Carta Magna dispõe que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Santos revela que essa foi uma inovação no combate à discriminação racial contra o negro. “Por meio dela, o cidadão pode se sentir protegido. Afinal, sua humanidade está sendo tutelada pelo direito penal”. Por outro lado, conforme mostra a pesquisa, o sistema penal brasileiro tem uma vivência histórica de racismo, que atinge principalmente essa parcela da população. Essa contradição (a norma constitucional que não tolera a discriminação e a história do sistema penal que se revela discriminatória) suscitou a busca pela compreensão de quais são as formas de discriminação que atingem a população negra no contexto da segurança pública, justifica o pesquisador.
Assim, o presente estudo aponta que “o Brasil, durante o século 20, procurou reduzir ou eliminar a discriminação contra o negro por meio de legislações punitivas coibindo discriminações diretas”, ou seja, o tratamento discriminatório desigual endereçado ao indivíduo ou ao grupo e motivado ou justificado por um critério de diferenciação juridicamente proibido (raça, cor, sexo, religião, entre outros). No entanto, “o Estatuto da Igualdade Racial (EIR – Lei n° 12.288/10) inova o ordenamento jurídico trazendo a modalidade de discriminação indireta, ou seja, as práticas discriminatórias que não se revelam explicitamente”, esclarece Santos. “Não é necessário comprovar a justificativa ou motivação discriminatória para a censura judicial de uma medida ou prática institucional que, aparentemente neutra, tem impacto diferenciado sobre indivíduos ou grupos”.
Democracia racial: um mito?
De acordo com a pesquisa, “há um consenso em todos os estudos quanto ao caráter discriminatório das agências encarregadas de conter a criminalidade: a intimidação policial, as sanções punitivas e a maior severidade no tratamento dispensado àqueles que se encontram sob tutela e guarda nas prisões recaem preferencialmente sobre ‘os mais jovens, os mais pobres e os mais negros’”.
Na raiz da discriminação contra o negro está o preconceito e este é agravado, entre nós, devido ao mito da democracia racial, à crença na ausência de hostilidade manifesta e de violência entre brancos e não brancos, comenta o autor. “Trata-se, a discriminação, de um fenômeno difuso, com aspectos objetivos e subjetivos, passível de reprodução involuntária e cujo enfrentamento exige, portanto, um especial cuidado”.
A segurança é um direito fundamental e um serviço público a ser prestado pelo Estado de forma igualitária a todos os cidadãos. Segundo o estudo, a polícia (importante instituição do aparato político-jurídico para o exercício do controle social) deve agir orientada pelas normas do Estado de direito democrático. “Uma polícia democrática segue corretamente a lei, sem perseguição e tratamento abusivo motivados por preconceito e distinções arbitrárias. Contudo, tais premissas estão distantes da realidade no Brasil e, especificamente, em São Paulo”.