São Paulo (AUN - USP) - O preá e o porquinho-da Índia constituem animais de espécies diferentes, apesar de derivarem de um ancestral comum, eles diferenciam-se não somente pelas características físicas, mas por padrões comportamentais singulares. São justamente essas distinções de traços comportamentais que estão sendo analisadas no estudo sobre a influência do processo de domesticação.
Há cerca de dois anos, o projeto de mestrado desenvolvido pela aluna Nina Furnari, orientanda do professor César Ades, do Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo, vem analisando o comportamento sexual das duas espécies.
O preá (Cavia aperea), um roedor silvestre exclusivo da América Latina e muito comum no Interior do Estado de São Paulo, é geralmente considerado um representante de uma espécie ancestral que, domesticada há cerca de 3000 anos nos Andes, deu origem à cobaia (Cavia porcellus), popularmente conhecida como porquinho-da-Índia. Um dos critérios utilizados para a distinção de espécies próximas é a maior dificuldade de reprodução.
Em seu experimento, Nina formou casais intraespecíficos (cobaia/cobaia e preá/preá) e interespecíficos (macho cobaia x fêmea preá e macho preá x fêmea cobaia) que foram mantidos por dois dias em um laboratório isolado acusticamente para o registro em vídeo de seus comportamentos. Todas as fêmeas testadas estavam em seu período fértil, aumentando assim a probabilidade de acasalamento. Os registros em vídeo foram analisados posteriormente e dados como corte exibida pelo macho, contato e aproximação entre os animais e corte exibida pela fêmea foram comparados estatisticamente entre os grupos. Para uma avaliação mais detalhada, a segunda parte do experimento da pesquisadora consistiu em deixar os mesmos pares juntos por um período de tempo maior em um ambiente semi-natural, aumentando assim a probabilidade de que ocorresse corte e cópula.
A avaliação do conteúdo dos registros mostrou que o repertório das duas espécies, embora constituído basicamente dos mesmos comportamentos, difere quanto à freqüência e duração destes comportamentos. Estas diferenças permitem entender o impacto da domesticação nas espécies. Alguns resultados já eram esperados, como a maior incidência de corte e cópula entre casais de mesma espécie, entretanto a corte e a cópula interespecifica também ocorreu, inclusive resultando em filhotes híbridos, os quais se assemelharam fisicamente aos preás mas mostraram características comportamentais intermediárias às duas espécies.
O experimento mostrou que os machos preás cortejaram menos as fêmeas preás do que os machos cobaias em relação às fêmeas cobaias. A explicação para esse fato se deve, em parte, à natureza selvagem do macho preá que, em seu ambiente natural, gasta grande parte de seu tempo defendendo-se de predadores e procurando alimento, dedicando menos tempo à corte, que se torna, deste modo, menos freqüente. Além disso, um macho preá que passa muito tempo cortejando uma fêmea torna-se um alvo fácil para predadores.
Já no caso dos casais preá/cobaia, notou-se que, embora normalmente mais propenso a cortejar, o macho cobaia pode sofrer, por parte da fêmea preá, uma forte rejeição capaz de inibir o seu comportamento de corte, uma possível barreira reprodutiva. É possível que a rejeição por parte da fêmea não seja tão marcada no caso de casais macho preá/fêmea cobaia.
Ao contrário do que pensa a maioria, a domesticação não é um processo rápido, ela exige centenas de anos de seleção artificial de espécimes, habituação e convivência dos animais com os humanos para ocorrer. O estudo realizado por Furnari com cobaias e preás é pioneiro no Brasil e vem ilustrar como é possível avaliar, através da observação do comportamento sexual das espécies, como barreiras comportamentais podem atuar na diferenciação das espécies ao longo do processo de domesticação.