Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), reconhecida escritora e literata brasileira do século 19, esteve por muitos anos esquecida. Em um trabalho de resgate da memória desta 'mulher das letras', seu arquivo pessoal foi revisitado e entre sua produção acumulada, foram encontrados por pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, 12 textos dramáticos inéditos.
A pesquisa de Michele Fanini, pós-doutoranda do Instituto, busca encontrar as ausências femininas durante o processo de formação da Academia Brasileira de Letras (ABL). Júlia é a primeira grande ausência, o que fez com que a pesquisadora fosse atrás de mais informações sobre a escritora quando se deparou com as peças inéditas em seu arquivo pessoal.
"São 12 textos teatrais com os temas mais variados e que mostram a versatilidade estilística da Júlia", conta Michele sobre o achado enquanto ressalta a problemática de se trabalhar com esse extenso material. Apesar de fazer parte de um universo dramatúrgico da autora, não foram nem ao menos publicados ou encenados em sua época e essa especificidade fez com que a pesquisadora fosse forçada a levar em conta durante suas análises.
Arte, literatura e performance se juntam nestes textos que trazem uma intencionalidade. Afinal, há rubricas e anotações da dramaturga para uma possível encenação. “Esse é meu desafio, na minha pesquisa, de buscar a importância dessa versatilidade estilística da escritora”, pondera Michele sobre a escritora que, embora tenha produzido muitos romances e crônicas, produziu essa dramaturgia densa que trata da escravidão e profissionalização feminina, além de temas problemáticos acerca do ‘ser mulher’ em um momento em que os papéis eram dados e delimitados – isso na virada do século, um dos períodos mais férteis da história, para a pesquisadora.
Ausência feminina na ABL
Inicialmente, a pesquisa de Michele buscava tratar do ingresso feminino na ABL, mas a partir da descoberta destes bastidores, a pós-doutoranda decidiu não somente abordar a presença feminina, mas as ausências anteriores. Marco entre as ausências, Júlia esteve presente durante o processo de formação da Academia e ficou de fora. "O nome dela apareceu na primeira lista dos membros fundadores, mas ela não entrou", revela Michele ao mesmo tempo em que lembra que seu marido, Filinto de Almeida, foi aceito como imortal, ainda que sua produção tenha sido inferior à de Júlia – um acadêmico consorte, ou nas palavras da pesquisadora: com sorte.
Hoje esquecida pela opinião pública, Júlia foi em sua época, exemplo de mulher bem sucedida. Viveu por muitos anos em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em um casarão que ajudou a comprar, com o dinheiro da venda do romance de sugestivo título A Falência. Escrever era sua profissão e ela lucrou com isso."O ganho que ela tinha com a vendagem dos romances ela empregava. Ela era uma profissional das letras", conta a pesquisadora. Ainda que vivesse em uma época que, como mulher, era muito difícil de se profissionalizar.
Júlia aproveitou de sua posição privilegiada de livre-passagem entre os meios da imprensa – além de escritora, era jornalista – e tematizou questões, mesmo que com certo cuidado, acerca do papel da mulher na sociedade.
Em jornal, Júlia manteve uma coluna de crônicas – posteriormente compilada n'O Livro das Noivas – em que escrevia sobre ações cotidianas e a vida de homens e mulheres em igual medida. Em sua escrita, criou um campo de apaziguamento, o que a pesquisadora chama de equilíbrio tenso, porque ela buscou abordar temas, para a época, muito desafiadores. "É importante pensar que ela leva essas questões. Para a época ela era bastante vanguardista, mas ela não toma um partido", ressalta Michele.
Arquivo pessoal de Júlia
Ao saber mais sobre a não entrada de Júlia na ABL, ainda que fosse exímia prosadora em uma época que poucas escritoras se notabilizavam como tal, fez com que a pesquisadora se interessasse por reconstruir os bastidores das ausências, e teve o IEB como inspiração para a sequência de seu trabalho.
O contato com as discussões do instituto acerca das fontes de pesquisa e manutenção de acervos, contribuíram para que a pesquisadora pudesse desenvolver um olhar mais abrangente e panorâmico sobre suas temáticas. Esta oportunidade, então, contribuiu para que ela pudesse entrar em contato com o neto de Júlia, Cláudio Lopes de Almeida, que manteve o acervo de sua avó catalogado depois de tanto tempo, e no final de 2010, doou para a ABL quando finalmente sua avó entrou – ainda que de maneira não convencional – para a Academia Brasileira de Letras. Seu acervo hoje é um apêndice ao de Filinto de Almeida, consorte.