ISSN 2359-5191

21/11/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 136 - Saúde - Instituto de Química
RNAs não-codificadores e sua atuação no câncer de pâncreas
Laboratório estuda alterações moleculares em tumores e possíveis alvos terapêuticos para a doença
O pâncreas é uma glândula pertencente ao sistema digestório e endócrino. É o responsável por produzir o suco pancreático que age no processo digestivo / fonte: reprodução - oglobo.globo.com

Câncer é o nome dado a um conjunto de doenças que apresentam o crescimento desordenado de células que invadem tecidos e órgãos, acumulando-se e determinando a formação de tumores. Seu início se dá a partir de mutações nas moléculas de DNA que compõe o genoma das células e que acarretam em um mau funcionamento das atividades celulares.

O câncer de pâncreas é um dos tipos mais agressivos. Apesar de não ser o mais frequente – é responsável por apenas 2% de todos os tipos de câncer diagnosticados no Brasil – possui uma alta taxa de mortalidade - aproximadamente 4% do total de mortes por essa doença no país, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer.

Menos de 5% dos pacientes com câncer de pâncreas sobrevivem mais do que 5 anos após o diagnóstico. Isso porque a doença é geralmente assintomática e não existem tratamentos eficazes quando diagnosticada em estágios avançados. Portanto, a única terapia curativa é a remoção do tumor quando ele ainda se encontra bem pequeno, sendo necessário o diagnóstico precoce da doença.

Nesse contexto, o professor Eduardo Moraes Rego Reis, do Instituto de Química da USP, coordena o Laboratório de Genômica e Expressão Gênica em Câncer, que busca compreender do ponto de vista genético as alterações moleculares ocorridas em células tumorais, com foco no câncer de pâncreas. O Laboratório possui duas frentes de interesse: “A primeira é identificar genes com expressão aberrante nos tumores e que possam ser utilizados como biomarcadores para o diagnóstico da doença”, explica Eduardo. “A outra busca descrever as alterações moleculares necessárias para que uma célula do pâncreas se transforme em uma célula maligna, capaz de escapar do sistema imune do organismo, formar uma massa tumoral e dar origem a células que se deslocam pelo corpo para formar tumores à distância [metástases]. Entendendo isso melhor, é possível pensar em novos alvos terapêuticos que possam ser testados na tentativa de controlar o crescimento desordenado e progressão do tumor”, conclui o professor.

Função dos RNAs não-codificadores

A equipe concentra a pesquisa em elementos genéticos ainda pouco estudados no processo da tumorigênese, os RNAs não-codificadores (ncRNAs). Apenas 3% a 5% do genoma contêm genes que codificam proteína. Os outros 95%, a princípio, não possuíam função, sendo denominados por muito tempo de “DNA lixo”. Entretanto, pesquisas recentes comprovaram que o genoma produz uma grande variedade de ncRNAs que exercem papéis importantes na biologia da célula. “Existem relatos na literatura de RNAs não-codificadores que exercem papéis regulatórios no controle da expressão gênica que são críticos para a agressividade do tumor, porém ainda foram pouco estudados no câncer de pâncreas”.

Todas as células possuem genes denominados proto-oncogenes e supressores tumorais, ambos responsáveis por estabelecer o equilíbrio celular. Os proto-oncogenes controlam a proliferação das células. Uma vez que estes genes sofrem mutações, a célula começa a se dividir fora de controle, podendo originar um tumor. O gene “ruim” é conhecido como oncogene.

Já os supressores tumorais são os responsáveis por retardar a divisão celular e “indicar” quando uma célula deve morrer. Quando esses genes se encontram inativados nas células, o resultado é um desenvolvimento celular desordenado que também pode levar ao câncer. Os supressores tumorais podem perder sua função através de silenciamento do gene causado por compactação do DNA no genoma das células tumorais.

Com isso em mente, o Laboratório busca estabelecer uma relação entre ncRNAs que possuem atividade oncogênica, ao participar de mecanismos que levam ao silenciamento de genes supressores tumorais. “Nossa hipótese é de que alguns RNAs não-codificadores que se encontram super-expressos no tumor regulam o aumento da compactação do DNA e o silenciamento de genes supressores tumorais importantes para o comportamento agressivo do câncer, em especial, a sua capacidade de disseminar no organismo e crescer em locais distantes”, esclarece Reis. Um exemplo dessa relação já foi comprovado em estudos relacionados a câncer de mama. “O que estamos fazendo aqui é investigar isso em câncer de pâncreas”.

Metodologias genômicas e modelos biológicos

Em busca de entender as alterações moleculares e a biologia da doença, o Laboratório adota diferentes abordagens de pesquisa:

Primeiramente, fragmentos de tecido tumoral e não tumoral de pacientes com câncer de pâncreas são obtidos através da colaboração com grupos clínicos em diferentes hospitais. Em seguida, isola-se o DNA e o RNA das amostras. Como ressalta o professor Reis, observar o RNA é uma forma mais direta de tentar compreender as mudanças que ocorrem nas células tumorais: “No DNA você tem o raio-x da sua informação genética, e pode identificar trechos corrompidos no tumor, enquanto que o RNA te dá um filme da mudança da expressão do genoma, como ele está funcionando no tumor, em que regiões está mais ativo ou menos ativo”.

Após isolar o RNA das amostras dos pacientes, o material é analisado através de uma tecnologia chamada sequenciamento de nova geração. Esses procedimentos bioquímicos são seguidos de análises computacionais para identificar os ncRNAs com expressão alterada nos tumores. “Temos que ter computadores para armazenar um grande volume de dados de sequenciamento do RNA e alunos com conhecimentos de biologia e computação para analisar os dados”, reitera Eduardo Reis.

Para desvendar a função molecular dos ncRNAs identificados no estudo, o Laboratório utiliza linhagens celulares derivadas de tumores de pâncreas que são cultivadas em garrafas com meio de cultura apropriado. O estudo funcional dos ncRNAs utiliza técnicas de biologia molecular em que a abundância das moléculas nas células é manipulada e observa-se o comportamento da célula tumoral: “Manipulamos os níveis de expressão de ncRNAs nestes modelos celulares para avaliar se podem induzir alterações em características das células tumorais, como capacidade de proliferação, migração ou invasão”.

RNAs não-codificadores podem recrutar complexos de proteínas que modificam quimicamente o DNA e promovem o silenciamento de genes supressores de tumor, contribuindo para a maior agressividade do câncer / fonte: Laboratório de Genômica e Expressão Gênica em Câncer (LGEGC)

Há cerca de um ano, o Laboratório também vem trabalhando com modelos de estudos realizados a partir de xenotumores. O processo consiste em retirar um pedaço do tumor de paciente e implantá-lo, subcutaneamente, em um camundongo sem sistema imunológico funcional (imunosuprimido). O intuito é que, dessa forma, o tumor comece a proliferar no animal. Após determinado período, o animal é sacrificado, o tumor é retirado e posteriormente implantado em outra cobaia.

Segundo o professor Eduardo, esse modelo de pesquisa simula mais precisamente a realidade da doença, tornando possível transportar eventuais resultados bem-sucedidos para uma prática clínica. “Além de proliferar as células tumorais, com os xenotransplantes a gente consegue manter um pouco das células que vieram do paciente e que circundam o tumor, mas que não são tumorais. Essas células constituem o microambiente tumoral e são essenciais para o desenvolvimento do câncer, sendo um modelo com comportamento mais parecido com o tumor presente no paciente do que as células que a gente cresce em meio de cultura no laboratório”.

A utilização de xenotumores compõe uma das tendências da pesquisa molecular em oncologia, chamada medicina de precisão, que consiste em realizar análises e estudos moleculares direcionados ao paciente, com o intuito de encontrar biomarcadores e alvos terapêuticos para o indivíduo em particular. “É um objetivo ainda distante, mas nosso esforço é no sentido de montar uma plataforma que seja capaz de incorporar estudos desse tipo no futuro”.

Perspectivas futuras

A relevância biológica de RNAs não-codificadores e sua participação na formação de tumores é algo recente, que recebeu atenção global há cerca de dez anos. No que se refere a atuação dos ncRNAs especificamente em câncer de pâncreas, Eduardo Reis e seus companheiros de Laboratório são pioneiros na pesquisa no Brasil e no mundo. Para o professor do IQ, seu estudo representa uma contribuição relevante no âmbito da ciência básica e com potenciais aplicações para futuras terapias: "A perspectiva é ampliar o entendimento da função de RNAs não-codificadores em processos regulatórios da célula que tenham impacto na agressividade tumoral, e que possam também indicar vulnerabilidades capazes de serem exploradas futuramente em terapias para o tratamento do câncer”.

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