Desde o século 19 o negro é representado de maneira caricata nas histórias em quadrinhos brasileiras, e, segundo pesquisa realizada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, ainda há resquícios dessa representação nas publicações de hoje.
O estudo foi desenvolvido pelo pesquisador e professor Nobuyoshi Chinen, que avaliou em seu estudo de doutorado histórias em quadrinhos publicadas no Brasil desde 1869 até publicações de 2011 – tendo como publicação inicial Nhô Quim, de Angelo Agostini. Chinen também faz parte do Observatório de Quadrinhos da ECA.
As histórias em quadrinhos têm como algumas de suas bases a caricatura e o humor, geralmente exercidos através das generalizações e do reforço de traços exagerados. Mas o perigo dos estereótipos está na possibilidade de o público passar a considerar determinado tipo de figuração normal, quando na verdade é ofensivo.
A pesquisa indicou que a representação dos negros, desde o século 19, tinha traços caricaturais extremamente exagerados. Mas os estereótipos identificados nas publicações não remetem apenas aos aspectos visuais, referem-se também aos papéis desempenhados nas histórias. Em comparação com os personagens brancos, os negros eram invariavelmente personagens subalternos, intelectualmente limitados e socialmente desfavorecidos – utilizados muitas vezes para ser o elemento cômico em situações que lhes eram quase sempre desfavoráveis.
O pesquisador conta que a escolha da presença do negro nos quadrinhos como tema decorreu de um paradoxo presente na palavra “gibi”. “Etimologicamente, ‘gibi’ significa menino negro, mas se tornou sinônimo de revista em quadrinhos, após uma publicação com esse título fazer muito sucesso. No entanto, o Gibi, apesar de ser a mascote da tal publicação, não era um personagem de histórias em quadrinhos”, explica.
Entre as histórias em quadrinhos avaliadas por Chinen estão as séries criadas pelo cartunista Mauricio Pestana, sobre a participação negra em revoltas brasileiras, além dos personagens Luana, criada por Aroldo Macedo, e Aú, O Capoerista, criado por Flávio Luiz.
Como toda forma de comunicação de massa, os quadrinhos têm a capacidade de disseminar conceitos e estereótipos alimentados por uma determinada sociedade ou, mais apropriadamente, pelo segmento dominante dessa sociedade. Assim, a maneira como os negros foram representados nos quadrinhos até recentemente, reflete o preconceito com que eles eram tratados pela sociedade de modo geral. “Os meios de comunicação só amplificam e ajudam a consolidar um modelo de representação. E, ao longo de mais de 140 anos de publicação de quadrinhos no Brasil, a representação do negro foi estereotipada e preconceituosa, além de proporcionalmente baixa em relação à parcela afrodescendente que compõe a população do país”, afirma.
Somente a partir da década de 1970 é que esse quadro começou a mudar, com uma presença maior de personagens negros e com papéis que fogem do padrão negativo que caracterizou essa representação. Chien indica que hoje o número personagens negros protagonistas é maior, e não é mais tão comum explorar eventuais diferenças raciais como instrumento para criar humor. “Se antes era admissível conceber um personagem negro com traços simiescos [de macaco] e modos selvagens, ou brincar com a cor da pele, hoje em dia não se vê mais esse tipo de representação. Mas isso não quer dizer que o racismo tenha sido ao todo eliminado”, afirma. Afinal, embora o panorama geral tenha mudado de uns tempos para cá, ainda há relativamente poucos personagens negros nos quadrinhos brasileiros, e menos ainda os que têm papel de protagonista.