Em meio à militância e às discussões pelos direitos das mulheres nas sociedades muçulmanas, um movimento que tem crescido atualmente é o feminismo islâmico, baseado na reinterpretação de fontes religiosas. Esse movimento apresenta importância para novas perspectivas da mulher no islã.
As atividades do movimento estão sendo estudadas pela pesquisadora Cila Lima, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP), que objetiva entender a relação entre feminismo islâmico com os movimentos islamistas e em que medida o caráter religioso pode estender ou retrair o caráter feminista desse movimento.
O feminismo islâmico se formou do diálogo entre movimentos islamistas de mulheres e movimentos feministas seculares, mas apresenta caráter distinto. Nem toda muçulmana feminista é feminista islâmica. “Ela pode ser muçulmana na vida privada, mas atuar de forma secular”, afirma a pesquisadora. A atuação do feminismo islâmico é político-religiosa, tendo como característica principal a realização de reinterpretações de fontes religiosas.
A reinterpretação das fontes religiosas trabalha com dois conceitos islâmicos: Ijtihad (interpretação livre das fontes religiosas) e Tafsir (comentários sobre o alcorão). A interpretação das fontes religiosas sempre foi tradicionalmente realizada por homens, relegando as mulheres a um segundo plano na sociedade e decidindo seu papel a partir de visões patriarcais. Segundo Cila, as autoras feministas islâmicas, ao reinterpretá-las, mostram o masculinismo e o conservadorismo anterior e expandem a perspectiva feminina nas leis e na sociedade islâmica.
Elas reinterpretam principalmente os ahadith (dizeres e ações do profeta), fiqh (jurisprudência humana, um corpo de leis islâmicas que compõem a Sharia) e o Alcorão. “A espinha dorsal dessa reinterpretação é o Alcorão”.
Um exemplo relevante dessa reinterpretação é a da autora Fátima Mernissi, que, embora secular, refez todo o histórico das mulheres dos profetas – que costumam ser usadas como parâmetros para as mulheres nas leis islâmicas – e levantou o quanto elas eram atuantes na sociedade. Outro exemplo é a reinterpretação de Azizah Al-Hibri do termo do Alcorão qawwamuna'ala (prover para), conceito muito usado para afirmar que a mulher não pode trabalhar fora. Ela defende que esse termo, um chamado do homem para auxiliar a mulher no nascimento da criança, traz em si somente a ideia de que o homem deve prover nesse momento, mas não de que a mulher não pode prover sozinha.
A doutoranda apresenta a hipótese de que o movimento não é homogêneo e pode ser pensado a partir de dois eixos constitutivos. O primeiro é a separação em duas vertentes: uma que proclama um jihad de gênero, e a outra que defende os direitos humanos internacionais. O segundo é a recepção diferente em cada país conforme a situação demográfica.
Apesar de afirmar a importância dessas reinterpretações religiosas, Cila menciona que algumas autoras questionam se o feminismo islâmico terá atuação política de fato, efetivando mudanças nas leis. Há poucas já observadas, como a presença de feministas islâmicas em cortes da Shari’a para evitar o apedrejamento de mulheres no Iêmen e na Nigéria. Outro caso é o da feminista turca Hydayet Tuksal que trabalha para uma ONG que faz as leituras das cartilhas que vão para 76 mil mesquitas e já as envia com a perspectiva feminista islâmica. Mas se elas atuarão em grande quantidade de maneira política é outro questionamento. “Há uma diferença entre fazer uma interpretação religiosa e mudar as fontes islâmicas ou mudar as mentes nos âmbitos privados, ou mesmo em mudar as constituições.”
A pesquisa, ainda em estágio inicial, conta com leituras bibliográficas acompanhadas de trabalho de campo. Este consistirá em um mês na ONG paquistanesa Women Living Under Muslim Laws (WLUML) e mais dois meses em duas organizações dos EUA, realizando estágio participativo na Muslim Women Lawyers for Human Rights (KARAMAH) e visitas na Women's Islamic Iniciative in Spirituality and Quality (WISE).