São Paulo (AUN - USP) - Tia Nastácia, Tio Barnabé, o Saci, o Negrinho do Pastoreio, a Bonequinha Preta. De quantos personagens negros você consegue lembrar? São quase os mesmos que há mais de cem anos ocupam o universo escolar, e que agora foram criticados no 1º Seminário sobre Políticas de Ações Afirmativas e Consciência Negra da Faculdade de Educação (FE) da USP, que aconteceu em maio. Organizado pelos alunos do Grupo de Estudos Negros da FE e a professora Maurilane Biccas, o evento aproveitou o ensejo das comemorações do dia da libertação dos escravos para esquentar as discussões que serão aprofundadas num seminário maior, em novembro.
A aprovação da lei em 2003 que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas de Ensino Fundamental e Médio, resultado da luta anti-racista no país, não estabeleceu diretrizes para ser viabilizada. Educadores criticaram, por exemplo, a falta de bibliografia de qualidade para os alunos. Os personagens negros dos livros infanto-juvenis, além de serem poucos, geralmente aparecem descontextualizados, sem família e relegados a um papel social de submissão. “Queremos personagens de carne e osso, com histórias, e que também não falem apenas sobre questões raciais”, pontuou a socióloga e educadora Ana Lúcia Silva Souza, em referência também aos livros que, em contrapartida, colocam o negro sem outra preocupação além da luta árida contra o preconceito.
Apresentar o universo africano e afro-brasileiro como uma visão de mundo, sem reduzi-lo a vestimentas ou gastronomia exóticas é, segundo Ana Lúcia, uma prática de ensino anti-racista. A socióloga propõe que os professores selecionem livros que tratem a questão de forma aprofundada e os levem às reuniões de pais, docentes e coordenadores. “’É uma maneira de desconflitar conflitando“, explicou. A grande conquista será quando esta produção puder ser levada às salas de aula. “Ter acesso a esse conteúdo é um direito dos alunos”, afirmou a educadora.
Racismo velado
Avanços na área de educação, como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), instituído pelo Ministério da Educação (MEC) em 1996, oferecem novos desafios. Criado para combater erros conceituais, preconceitos e falta de qualidade gráfica dos livros didáticos, o programa divulga uma lista daqueles que foram avaliados e aprovados, e a partir daí as escolas públicas escolhem quais adotar. “Hoje, nenhuma editora irá publicar um livro preconceituoso, devido a lei e interesses comerciais. Agora, o desafio é desvendar e denunciar o preconceito implícito na nova produção editorial”, afirma Ana Lúcia.
Caminha no mesmo sentido a opinião da Supervisora de Ensino, Elizabeth Souza, que há vinte anos lida com educação. Segundo Elizabeth, o racismo muitas vezes não é direto, mas ainda assim permeia as relações sociais na sala de aula. “É por isso que brigamos tanto pela consciência negra: muitos comentários e brincadeiras são inconscientes". A educadora lembra que já saiu chorando de uma aula na graduação (cursada na FE) porque havia sido discriminada pela docente. O argumento utilizado pela professora para refutar a discriminação foi que a aluna estava inventando o racismo, como se fosse uma “representação do imaginário”.
Elizabeth enumera várias práticas pedagógicas racistas que presenciou quando era diretora de escola. O susto de professores ao encontrarem um aluno que, “apesar de negro, era inteligente”, revela que a lei 10.639 precisa passar antes pelo reconhecimento do valor da cultura afro-brasileira pelo próprio corpo docente. Por outro lado, personagens negros de novelas e propagandas que beiram o caricato denunciam forças de resistência à integração do negro na sociedade. Elizabeth aponta caminhos: “A questão social está entre o silêncio e a raiva. O meio termo é o diálogo, é conseguir falar sobre isso”.
Ana Lúcia relaciona alguns livros infanto-juvenis de qualidade que trazem personagens negros:
“Tanto, tanto!”, de Trish Cooke (Ed. Ática)
“Xangô”, de Reginaldo Prandi (Cia das Letrinhas)
“As tranças de Bintou”, de Sylviane Diouf (Cosac & Naify)