ISSN 2359-5191

06/10/2014 - Ano: 47 - Edição Nº: 69 - Arte e Cultura - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Grande Otelo é tema de tese sobre o cinema no Brasil
Nas vésperas do centenário do artista, estudo destaca sua trajetória e currículo e aprofunda a discussão sobre as relações raciais no cinema brasileiro
Grande Otelo

O próximo ano será o centenário de Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo, artista singular que inegavelmente marcou a história e o imaginário do cinema brasileiro. Dono de um itinerário vasto e marcante,  é impossível não reconhecer a importância e relevância dessa figura no campo das artes no país. Uma tese defendida recentemente no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, intitulada “Uma interpretação do cinema brasileiro através de Grande Otelo: raça, corpo e gênero em sua performance cinematográfica (1917–1993)”, justamente tem como centro a análise da biografia desse artista.

Luis Felipe Kojima Hirano, autor do estudo em questão, defende que “a biografia e a obra deste artista contribuem para pensar diferentes momentos do cinema brasileiro, por um lado, e refletir sobre as relações raciais, suas intersecções com a questão de gênero e o próprio corpo dos artistas (negros ou brancos), por outro, observando então como estes elementos são reinterpretados conforme a lógica do campo cinematográfico”.

O pesquisador conta que, em princípio, sua pesquisa se propunha a analisar a representação do negro no cinema brasileiro nos anos de 1930 a 1950. Porém, esse intento suscitou alguns entraves: “uma das dificuldades de analisar representações artísticas de minorias no caso do cinema é que, dada a distribuição desigual de papéis entre brancos e negros, os autores, diretores e críticos são em sua maioria brancos. Nesse sentido, é difícil encontrar nos filmes o ponto de vista dos negros”, observou. Por isso, o antropólogo se propôs a analisar a figura de um intérprete negro, cuja trajetória possibilitasse a construção de um panorama do cinema no Brasil. Assim surgiu a figura de Grande Otelo.

Lilia Schwarcz, professora doutora do Departamento de Antropologia da USP e orientadora da tese, elogiou a relevância e a originalidade do estudo e contou que, em princípio, o que era uma dissertação de mestrado se estendeu a uma tese mais aprofundada, com um tempo maior de elaboração. Hirano, assim, teve a oportunidade de fazer um doutorado sanduíche em Harvard, onde dialogou com outras perspectivas, como a do professor Nicolau Sevcenko – o que, para a orientadora da tese, foi muito positivo. “Foi muito bonito, porque o recorte começou com a chanchada, mas depois se estendeu. E, ao estudar a história de Grande Otelo, percebemos que sua biografia ilumina os diferentes momentos do nosso cinema”, aponta a antropóloga.

 

Um artista singular

Para Luis Felipe, Grande Otelo, além de ser um ator negro em um espaço dominado por atores brancos, também era singular em termos de sua composição corpórea. Ele tinha 1,50 m de altura, era magro e sua fisionomia – pensada enquanto construção social – era a de uma criança, de olhos grandes e rosto arredondado. Justamente por ter essa configuração corporal, o antropólogo observa que ele expressava uma virilidade assexuada – em contraposição a figuras como a de Antonio Pitanga ou Zózimo Bulbul, atores negros que possuíam uma sexualidade mais aflorada em seus filmes. Essa composição era adequada a ideais de raça preconizados desde o cinema hollywoodiano de 1930, que propunham um afastamento de relações de miscigenação no enredo de seus filmes e também na interação ator-público, evitando a atração da audiência branca ao ator negro. Por isso também Grande Otelo se insere no cinema por meio da comédia, uma forma de apaziguar o terror colonial do negro forte, viril, que ameaça o status quo da família branca, com traços corporais que não assustassem –, mas dessem à plateia branca uma sensação de conforto. Por outro lado, sua aparência e estatura também serviram, em certo momento, para explorar a visão do negro vitimizado, de quem o espectador sente pena.

Em suas análises de filmes, entrevistas e notícias de jornais, Hirano concluiu que “os papéis de Grande Otelo seguem a transformação dos ideais cultivados para/por um público majoritariamente branco daquilo que deveria ser o negro. Assim, é digno de nota que Otelo tenha se destacado como malandro carioca (nas chanchadas), símbolo do povo explorado (em Rio zona norte, de Nelson Pereira dos Santos, 1957), que tenha caído no ostracismo durante o auge do Cinema Novo para retornar às telas como Macunaíma, no filme de Joaquim Pedro de Andrade (1969) – que retomava o tipo do malandro. Nos anos seguintes, à medida que a idade avançava, transformou-se no ancião curandeiro de Quilombo (Carlos Diegues, 1977)”, analisa.

 

Hirano destaca que Grande Otelo ficou marcado pelo papel de malandro das chanchadas – e isso, apesar de ter vivido, em caráter de exceção, a testemunha e signo histórico do cinema subdesenvolvido de Rei do Baralho (1974), de Júlio Bressane, e Nem tudo é verdade (1986), de Rogério Sganzerla, e de ter alcançado o reconhecimento de Orson Welles, que o considerava o maior ator da América do Sul. Para além disso, após uma trajetória tão vasta, Grande Otelo termina sua vida na Escolinha do Professor Raimundo, onde vivia um personagem incapaz de falar corretamente.

A partir do percurso do artista Grande Otelo, Hirano fala da construção de um estereótipo do negro no cinema, produzido, segundo o antropólogo, por dois fatores: (1) a distribuição desigual de papéis entre brancos e negros; e (2) a repetição de algumas características exageradas, positiva ou negativamente. Para ele, por ser humorista, Grande Otelo carregou um pesado fardo durante a sua carreira, pois “todo papel que representava, fosse estereotipado ou complexo, acabava recaindo sobre seu grupo racial. No caso dos papéis cômicos, isso se tornava mais forte, já que eles representavam no mais das vezes sempre um negro fazendo palhaçada. Charles Chaplin ou Oscarito, por sua vez, representavam, em geral, comicamente os dilemas do homem universal ou do homem brasileiro diante da modernidade”, pondera.

 

O ator negro na atualidade

Luis Felipe defende que, por conta da distribuição histórica desigual de papéis entre brancos e negros no cinema e na televisão brasileira, a situação dos atores e atrizes negros ainda é muito difícil nos dias de hoje: “Por um lado, as ofertas de papéis para afrodescendentes continuam escassas, e isso dificulta em dobro sua continuidade nessa carreira. Por outro, em programas da atualidade, esses papéis são estereotipados e, quando não são, têm grande possibilidade de se converterem em novos estereótipos.” Para ele, alguns personagens e comediantes contemporâneos perpetuam rótulos, visões preconceituosas e a desigualdade na representação de brancos e negros. Hirano ainda pontua: “vivemos num país em que mais de 50% da população se declara preta ou parda, mas o espaço para atores e atrizes afrodescendentes não chega a 5% no cinema. Uma pesquisa recente da UERJ revelou que dos principais filmes brasileiros realizados entre 2002 e 2012, apenas 4,4% tinha atrizes pretas e pardas (as categorias são do censo). Isso sem contar que em cargos de diretor ou diretora e roteirista, nos filmes analisados o resultado era 0%. Ou seja, é uma diferença gritante.”

 

 

 

 

 

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