Caio Fernando Abreu (1948-1996), um dos escritores brasileiros mais citados na internet, escreveu muito mais do que frases de efeito comumente compartilhadas em redes sociais, as quais, inclusive, nem sempre são de fato de sua autoria. Mas o autor de diversos contos, romances, poemas e peças de teatro tem sido interpretado de maneira superficial e equivocada. Isso foi o que revelou um estudo sobre o erotismo presente nos contos do escritor gaúcho, defendido como tese de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Thais Torres de Souza, autora do trabalho, explica que, ao analisar aspectos do erotismo em contos de Abreu, notou que o escritor não busca defender o movimento gay em sua obra. "O tema dele é o erotismo, mas as pessoas olham como se fosse homoerotismo o tempo todo, ocultando a obra dele, que fala de outros tipos de relação. E ocultando até a própria recusa dele de categorizar os sujeitos", comenta. Nesse contexto, o "erotismo, em geral, aparece como não realização. É um desejo, algo muito importante para o sujeito, que ele busca constantemente, mas não realiza", defende Thais Torres. Assim, os contos de Caio Fernando Abreu mostram uma percepção pessoal sobre a vida dos sujeitos em um ambiente repressor. Como indica a pesquisadora, "é uma experiência erótica muito baseada na incompletude, naquilo que não se dá", e não uma simples defesa do homoerotismo.
Recusa a rótulos
De acordo com Thais Torres, Caio Fernando Abreu acreditava que a categorização das pessoas enquanto homossexuais reforça o preconceito existente. "Em uma carta, Caio diz que 'se você é sexuado, trepa com homem, trepa com mulher, transa com pessoas, mas quando põe o rótulo homossexual ou bissexual, você reforça preconceitos'", afirma a doutora. Logo, para Thais Torres, não existe na obra do autor o foco na defesa dos direitos homossexuais, comumente atribuído por leitores, críticos e pesquisadores, pois o próprio autor era avesso a esse tipo de categorização. Para ela, o autor "trata a sexualidade como algo comum a todos".
"Ele se recusava a defender bandeiras. São temas frequentes a ditadura, a opressão e o homoerotismo, mas não podemos dizer que isso aparece como bandeira ideológica, pois há apenas o retrato do efeito dessas experiências na vida do sujeito", explica a pesquisadora.
Vivência erótica, experiência política
Segundo Thais Torres, outra bandeira ideológica comumente atribuída de maneira equivocada a Caio Fernando Abreu é a da oposição à ditadura militar. "A temática do exílio é bem importante na obra dele, porque foi exilado. Ele trata do exílio, mas não com foco na experiência política. O foco dele está na experiência subjetiva, afetiva e erótica do sujeito exilado", explica.
Dessa forma, o autor gaúcho trata da experiência humana de maneira ampla, sem se focar na defesa aberta de ideologias. Como Thais Torres exemplifica, no conto Lixo e Purpurina, o autor afirma: "É como se eu não estivesse aqui nem lá, seja onde for". Assim, trata de uma questão, que é própria do exílio, mas também do sujeito de maneira geral: "Uma pessoa que está sempre deslocada, fora de lugar, nunca está integrada em um lugar ou experiência. É um eterno deslocamento, uma eterna inadequação. Esse é o assunto de que trata a obra do Caio", comenta a pesquisadora.
"Atribuir a ele uma bandeira ideológica que ele não adotava faz com que as pessoas interpretem mal a obra. As pessoas olham para o texto tentando ver a defesa dessa causa, que não existe. Claro que ele era gay, foi exilado, havia essas temáticas, mas o foco dele era o sujeito de maneira mais ampla. O que une a obra dele é a incompletude, a inadequação".