Faltando pouco mais de um ano para as Olimpíadas do Rio 2016, é inevitável que o discurso sobre a formação de atletas ganhe força entre a opinião pública. Afinal, por que o Brasil não obtém um rendimento em alto nível nas modalidades olímpicas? O que o Estado pode fazer a esse respeito? Como encontrar e formar talentos para o esporte brasileiro? Muitas pessoas acreditam que a resposta a estas perguntas resida na escola, mais precisamente, nas aulas de educação física, cuja função seria proporcionar aos jovens meios para desenvolver suas habilidades esportivas. Contudo, para o professor Marcos Neira, professor de educação física e docente da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), não cabe à escola formar atletas de alto nível.
O professor afirma que a sociedade tem uma visão errônea sobre o esporte em âmbito escolar e argumenta que a prática esportiva deve ser realizada em espaços fora desse ambiente. “Sempre que acontece um mega evento, a escola é chamada a ‘cumprir seu papel’”, diz. “Nós, cidadãos, estamos pensando que há uma conexão entre a escola e a prática esportiva em alto nível, mas isso não existe”. Neira lembra que o Brasil já tentou adotar um modelo de formação de atletas nas escolas durante os anos 1970, período em que a descoberta de talentos atenderia ao projeto ufanista dos militares. Mesmo nos dias de hoje, ele afirma que os governos ainda lançam mão de iniciativas do tipo, citando o exemplo do programa Atleta na Escola, cujo objetivo, segundo o site do próprio Ministério do Esporte, é “incentivar a prática esportiva nas escolas públicas e detectar talentos”.
Para o professor da FEUSP, programas como esse podem trazer mais prejuízos do que benefícios. “O pior que pode acontecer para uma rede de ensino é quando as gestões querem que se façam campeonatos: você deixa criança sem aula e prestigia só aqueles que já vêm com repertórios favoráveis. É horrível”, afirma. Isso porque o Brasil, assim como a maioria dos países no mundo, possui um sistema muito diferente do aplicado nos Estados Unidos, onde as escolas fornecem atletas diretamente para as ligas profissionais. “O Brasil não é os Estados Unidos. Com 35 alunos e material reduzido, a última coisa que você vai conseguir é aprender movimentos”, argumenta o professor. “Países com índices educacionais inquestionáveis, que estão na liderança do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos], não têm projetos que visam a formar atletas. Então por que a gente tem de entrar nessa?”, questiona.
Assim, o pesquisador defende que as aulas de educação física sejam espaço para discussões sobre o esporte, e não apenas palco de mera prática esportiva. Neira é fundador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar (GPEF), grupo de estudos ligado à FEUSP e destinado a professores da educação básica, sobretudo os da rede pública. A linha do grupo, fundado em 2004, consiste em fugir do que tradicionalmente se pensa sobre a disciplina. “A gente sai daquela lógica mais conhecida de desenvolver as habilidades motoras ou de trabalhar com modalidades tradicionais”, diz. Indo além de uma quadra cheia de crianças e jovens praticando futebol ou handebol, os professores do GPEF adotam práticas inovadoras em atividades como dança (estudando ritmos como samba, capoeira e funk), brincadeiras (com bolinha de gude e pião), ou esportes mais desconhecidos do grande público (tais quais ginástica, skate e futebol americano).
Na foto, atividade desenvolvida em aula de educação física por um dos professores do GPEF. Créditos: GPEF
Além de variar as temáticas trabalhadas em aula, as atividades não se restrigem às questões motoras, mas abordam também aspectos culturais e sociais. “Você tem trabalhos na sala de vídeo, informática, é um acesso um pouco mais amplo”, diz. “A disciplina pode, por exemplo, ajudar crianças, jovens e adultos a entender o que é a Olimpíada, a conhecer as modalidades, a fazer uma analíse crítica de quem está se beneficiando e quem está se prejudicando com o evento”, explica.
Outro princípio do GPEF consiste em trabalhar de acordo com o contexto social da comunidade. “Nossa preocupação é que as práticas corporais que as crianças fazem em seu dia-dia também possam vir para a escola”. Contudo, algumas atividades podem enfrentar resistência. Neira conta o caso de um professor do grupo que, para desestabilizar a hegemonia masculina no esporte, quis trabalhar com ginástica rítmica. Segundo ele, um professor de história da própria escola passou a zombar dos garotos, alegando que eles virariam “mulherzinhas” por fazerem ginástica rítmica na aula. Da mesma forma, professores que tematizaram ritmos populares como maculelê, samba, capoeira e funk tiveram de lidar com preconceitos dentro de suas escolas. “Sempre tem gente que vai falar ‘isso é macumba’”, aponta Neira. “Enquanto eram só brincadeiras europeias ou esportes euro-americanos, ninguém reclamava. Mas quando os professores colocam outras práticas, enfrentam represálias”.
Os participantes do GPEF se reúnem quinzenalmente para trocar ideias sobre os métodos que adotam em suas escolas, e assim, as experiências acumuladas ao longo dos 10 anos de existência foram reunidas nos dois volumes do livro Educação Física e Cultura: ensaios sobre a prática. O primeiro deles foi lançado em 2012, e o segundo, em novembro do ano passado, estando ambos disponíveis para download gratuito no site do grupo.
Neira ressalta que defender uma abordagem diferenciada nas aulas de educação física não significa que o poder público deve deixar de lado a formação de atletas e o incentivo à prática esportiva, mas sim, que ela deve ocorrer em espaços próprios, fora do ambiente escolar. “Da mesma forma que as aulas de português não são o momento de formar escritores, poetas e literatos, a aula de educação física não é o momento de formar atletas”, afirma. “Porque você tem na sala de aula meninos e meninas, grandes e pequenos, crianças de todas as origens. Então, o professor não pode chegar e falar que vão jogar 5 contra 5”.