ISSN 2359-5191

21/05/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 38 - Educação - Faculdade de Educação
Escola não tem obrigação de formar atletas
Para professor da Faculdade de Educação da USP, aulas de educação física não são momento adequado para prática esportiva em alto nível
Na foto, jovens de Maceió (AL) participam de etapa do programa Atleta na Escola. Créditos: Janaína Farias

Faltando pouco mais de um ano para as Olimpíadas do Rio 2016, é inevitável que o discurso sobre a formação de atletas ganhe força entre a opinião pública. Afinal, por que o Brasil não obtém um rendimento em alto nível nas modalidades olímpicas? O que o Estado pode fazer a esse respeito? Como encontrar e formar talentos para o esporte brasileiro? Muitas pessoas acreditam que a resposta a estas perguntas resida na escola, mais precisamente, nas aulas de educação física, cuja função seria proporcionar aos jovens meios para desenvolver suas habilidades esportivas. Contudo, para o professor Marcos Neira, professor de educação física e docente da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), não cabe à escola formar atletas de alto nível.

O professor afirma que a sociedade tem uma visão errônea sobre o esporte em âmbito escolar e argumenta que a prática esportiva deve ser realizada em espaços fora desse ambiente. “Sempre que acontece um mega evento, a escola é chamada a ‘cumprir seu papel’”, diz. “Nós, cidadãos, estamos pensando que há uma conexão entre a escola e a prática esportiva em alto nível, mas isso não existe”. Neira lembra que o Brasil já tentou adotar um modelo de formação de atletas nas escolas durante os anos 1970, período em que a descoberta de talentos atenderia ao projeto ufanista dos militares. Mesmo nos dias de hoje, ele afirma que os governos ainda lançam mão de iniciativas do tipo, citando o exemplo do programa Atleta na Escola, cujo objetivo, segundo o site do próprio Ministério do Esporte, é “incentivar a prática esportiva nas escolas públicas e detectar talentos”.

Para o professor da FEUSP, programas como esse podem trazer mais prejuízos do que benefícios. “O pior que pode acontecer para uma rede de ensino é quando as gestões querem que se façam campeonatos: você deixa criança sem aula e prestigia só aqueles que já vêm com repertórios favoráveis. É horrível”, afirma. Isso porque o Brasil, assim como a maioria dos países no mundo, possui um sistema muito diferente do aplicado nos Estados Unidos, onde as escolas fornecem atletas diretamente para as ligas profissionais. “O Brasil não é os Estados Unidos. Com 35 alunos e material reduzido, a última coisa que você vai conseguir é aprender movimentos”, argumenta o professor. “Países com índices educacionais inquestionáveis, que estão na liderança do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos], não têm projetos que visam a formar atletas. Então por que a gente tem de entrar nessa?”, questiona.

Assim, o pesquisador defende que as aulas de educação física sejam espaço para discussões sobre o esporte, e não apenas palco de mera prática esportiva. Neira é fundador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar (GPEF), grupo de estudos ligado à FEUSP e destinado a professores da educação básica, sobretudo os da rede pública. A linha do grupo, fundado em 2004, consiste em fugir do que tradicionalmente se pensa sobre a disciplina. “A gente sai daquela lógica mais conhecida de desenvolver as habilidades motoras ou de trabalhar com modalidades tradicionais”, diz. Indo além de uma quadra cheia de crianças e jovens praticando futebol ou handebol, os professores do GPEF adotam práticas inovadoras em atividades como dança (estudando ritmos como samba, capoeira e funk), brincadeiras (com bolinha de gude e pião), ou esportes mais desconhecidos do grande público (tais quais ginástica, skate e futebol americano).


Na foto, atividade desenvolvida em aula de educação física por um dos professores do GPEF. 
Créditos: GPEF 

Além de variar as temáticas trabalhadas em aula, as atividades não se restrigem às questões motoras, mas abordam também aspectos culturais e sociais. “Você tem trabalhos na sala de vídeo, informática, é um acesso um pouco mais amplo”, diz. “A disciplina pode, por exemplo, ajudar crianças, jovens e adultos a entender o que é a Olimpíada, a conhecer as modalidades, a fazer uma analíse crítica de quem está se beneficiando e quem está se prejudicando com o evento”, explica.

Outro princípio do GPEF consiste em trabalhar de acordo com o contexto social da comunidade. “Nossa preocupação é que as práticas corporais que as crianças fazem em seu dia-dia também possam vir para a escola”. Contudo, algumas atividades podem enfrentar resistência. Neira conta o caso de um professor do grupo que, para desestabilizar a hegemonia masculina no esporte, quis trabalhar com ginástica rítmica. Segundo ele, um professor de história da própria escola passou a zombar dos garotos, alegando que eles virariam “mulherzinhas” por fazerem ginástica rítmica na aula. Da mesma forma, professores que tematizaram ritmos populares como maculelê, samba, capoeira e funk tiveram de lidar com preconceitos dentro de suas escolas. “Sempre tem gente que vai falar ‘isso é macumba’”, aponta Neira. “Enquanto eram só brincadeiras europeias ou esportes euro-americanos, ninguém reclamava. Mas quando os professores colocam outras práticas, enfrentam represálias”.

Capa do segundo volume do livro Educação Física e Culturas: ensaios sobre a prática, produzido pelo GPEF. Os participantes do GPEF se reúnem quinzenalmente para trocar ideias sobre os métodos que adotam em suas escolas, e assim, as experiências acumuladas ao longo dos 10 anos de existência foram reunidas nos dois volumes do livro Educação Física e Cultura: ensaios sobre a prática. O primeiro deles foi lançado em 2012, e o segundo, em novembro do ano passado, estando ambos disponíveis para download gratuito no site do grupo.

Neira ressalta que defender uma abordagem diferenciada nas aulas de educação física não significa que o poder público deve deixar de lado a formação de atletas e o incentivo à prática esportiva, mas sim, que ela deve ocorrer em espaços próprios, fora do ambiente escolar. “Da mesma forma que as aulas de português não são o momento de formar escritores, poetas e literatos, a aula de educação física não é o momento de formar atletas”, afirma. “Porque você tem na sala de aula meninos e meninas, grandes e pequenos, crianças de todas as origens. Então, o professor não pode chegar e falar que vão jogar 5 contra 5”.



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