No imaginário social, está implícito que todo indíviduo, em algum ponto de sua vida, terá envolvimento sexual e afetivo com algum parceiro — seja esse do sexo oposto ou do mesmo sexo. Contudo, o que passa despercebido à sociedade é que também existem pessoas que não sentem atração sexual por outras: são os chamados assexuais, que representam cerca de 1% da população mundial. Mas como esses sujeitos passam a se autoidentificar dessa forma? Afinal, será que é realmente possível uma vida sem sexo? A pesquisadora Elisabete Oliveira conversou com assexuais e descobriu que a internet é uma das principais ferramentas responsáveis pela descoberta da assexualidade, ao passo que a escola — e a sociedade como um todo — ignoram quase completamente o tema.
Elisabete é autora da tese Minha vida de ameba: os scripts sexo-normativos e a construção social das assexualidades na internet e na escola, defendida pela Faculdade de Educação (FE) da USP. Durante o estudo, a pesquisadora conversou com quarenta assexuais, de 15 a 59 anos de idade, que lhe contaram suas experiências. Os relatos mostram como o tipo de educação sexual difundido nas escolas traz consigo a ideia da sexualidade como algo quase compulsório. “O sexo é colocado nesses programas como alguma coisa que obrigatoriamente vai acontecer, por isso os assexuais se sentem completamente inibidos”, diz.
Essa estrutura dos programas de educação sexual, somada à falta de conhecimento acerca do tema, faz com que a assexualidade, muitas vezes, seja tratada pelo aspecto patológico, como se houvesse algo errado com um indivíduo assexual. “Eles [os assexuais entrevistados] saíam desses programas achando que eram doentes, porque não sentiam nada daquilo que os palestrantes estavam falando”, afirma Elisabete. Os entrevistados também relataram que a assexualidade, em grande parte de suas vidas, causou um enorme impacto social. Ao demonstrarem desinteresse por relações afetivas, eles contam que eram constantemente cobrados por familiares e amigos, ou até mesmo tachados de homossexuais. “Então a gente percebe que a escola não ajudou em nada absolutamente, e só contribuiu para deixar ainda mais forte a ideia da diferença”.
Amor é diferente de sexo
A princípio, um indivíduo assexual seria aquele que não se interessa por sexo, mas mesmo dentro desse conceito, há uma série de subdivisões criadas para comportar as diferentes formas de assexualidade. Assexuais arromânticos, por exemplo, são aqueles que não têm interesse nem por sexo, nem por relacionamentos amorosos.
Há ainda o demirromântico, que embora seja assexual, pode ter conhecido, ao longo da vida, alguém específico por quem tenha tido atração sexual. É o caso de uma das entrevistadas de Elisabete: uma senhora de 49 anos conta que foi casada por uma década e teve dois filhos, mas que após o fim desse relacionamento, nunca mais se relacionou com ninguém. “Ela só se envolveu emocionalmente com os pais do filho dela porque se apaixonou”, explica Elisabete. “Um demir passa a vida como assexual, mas se conhece alguém que desperte esse desejo, pode ser que aconteça”.
Por fim, os assexuais românticos são aqueles que, apesar de não desejarem relações sexuais, podem desenvolver laços afetivos com parceiros (desde que sem sexo envolvido). Elisabete aponta que, numa sociedade na qual o desejo sexual é tido como universal, é difícil fazer com que as pessoas aceitem a possibilidade de um relacionamento sem sexo. “Por que o sexo automaticamente faz parte do relacionamento amoroso? A assexualidade vem questionar esse ponto, e por isso ela incomoda”, argumenta.
O processo de autodescoberta
Elisabete aponta que uma das maiores dificuldades de um indivíduo assexual é a falta de informação a respeito do assunto. Como o tema ainda é pouco debatido, os assexuais se sentem confusos durante a fase de autodescoberta. A pesquisadora diz que, para um homossexual, por exemplo, o reconhecimento é mais fácil, pois, apesar do preconceito, ao menos existe uma discussão sobre o tema. “Embora a homossexualidade seja atacada, o homossexual sabe o que é: tem referências na cultura sobre homossexualidade o tempo todo, está nas novelas, nas paradas gays”, afirma. “Já para o assexual, não tem alguém que diga 'eu sou assexual'. Não existe esse debate, então eles ficam perdidos e o caminho é a internet”.
Por permitir o anonimato, além da conexão entre pessoas do mundo todo, a internet se tornou uma das ferramentas mais poderosas na discussão do tema. Tanto que o próprio termo “assexualidade” só passou a ser usado por volta dos anos 2000, com o advento e fortalecimento da web. Por meio de fóruns online, pessoas que não sentiam atração sexual passaram a trocar experiências e a criar comunidades e, a partir de então, se enquadraram nesta categoria. Uma dessas pessoas foi o britânico David Jay, que, em 2001, criou a Rede para Educação e Visibilidade da Assexualidade (Aven, na sigla em inglês), comunidade que hoje possui mais de 70 mil membros e é referência no assunto.
Imagem da bandeira assexual. Além dela, bolo também é um símbolo da assexualidade. Foto: Reprodução
O próprio título da pesquisa de Elisabete vem da internet: a frase “Minha vida de ameba” foi inspirada em uma postagem de mesmo título, feita nos anos 1990 e encontrada pela pesquisadora. Ela conta que, há algum tempo, a ameba era um ícone dos assexuais — embora hoje não seja mais adotada como tal. “Na época, a ameba era um símbolo porque é um organismo unicelular, que se reproduz sozinho e sem precisar da ajuda de ninguém”, explica.
Uma vez que a autoidentificação de uma pessoa como assexual está fortemente ligada à internet, e uma vez que a rede mundial de computadores ainda é um fenômeno recente, Elisabete conta que, para os assexuais de gerações mais antigas, a descoberta era muito mais difícil. “Os mais jovens chegaram à adolescência e viram que eram diferentes, mas já tinha internet: então eles já iam pesquisar e, assim, se identificavam bem cedo”, diz. “Já os mais velhos passaram a vida toda sendo discriminados e não compreendidos, e só acabaram se identificando bem mais tarde”.
A pesquisadora argumenta que a importância da internet nesse processo de autoconhecimento reside justamente no fato de que, por meio da web, os assexuais puderam conhecer pessoas na mesma situação, deixando de se sentirem como um desvio. “A partir do momento em que um assexual descobre o conceito de assexualidade, percebe que não está sozinho, e a partir do momento que existem mais pessoas como eu, eu sou uma categoria”, completa.