Recentemente, no Brasil, pudemos acompanhar a polêmica em torno da revelação de uma carta que Mário de Andrade enviou a Manuel Bandeira, na qual comenta sobre sua homossexualidade, fato que a crítica literária, por muito tempo, se esquivou de mencionar. Mas a presença do homoerotismo na vida e obra de autores consagrados é muito mais comum do que se supõe, mesmo que esse aspecto seja frequentemente deixado de lado, como nos casos de Federico García Lorca e Walt Whitman. Um estudo defendido como dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP mostrou que a obra do poeta português Luís Miguel Nava passou pelo mesmo tipo de silenciamento por parte da crítica literária, que preferiu focar-se em aspectos estilísticos da obra do autor.
Para Sinei Ferreira Sales, pesquisador responsável pelo trabalho, "a crítica literária, sobretudo a portuguesa, não ousa identificar a questão da diferença sexual. É uma crítica sempre acadêmica que se fia nos aspectos estilísticos e formais da língua e da linguagem empregada pelo poeta". Dessa forma, o homoerotismo acaba sendo silenciado sob a justificativa de serem “escolhas de leitura”. "Isso acaba sendo um reflexo das hierarquizações sociais, condicionando a ordem dos discursos, regulando quem fala, o que fala e para quem fala. Ainda que o poeta tenha expressado abertamente seus desejos eróticos, a crítica literária se furta e opta por discutir a linguagem", de acordo com o pesquisador.
Segundo Sinei Sales, Luís Miguel Nava desenvolveu um sólido trabalho nos campos da arte, da crítica e da docência a partir da década de 1970, tendo publicado oito livros de poemas, três de crítica e atuado como docente em algumas universidades europeias, ensinando língua e literatura. "No ano corrente, completam-se 20 anos do brutal assassinato do poeta português cujos restos mortais foram encontrados violentados e violados, certamente por motivação passional e homofóbica, em um apartamento em Bruxelas. Contabilizava, então, 38 anos", comenta Sinei.
Ainda de acordo com o pesquisador, a obra de Nava foi recebida e interpretada pela crítica como uma obra potente, visceral, concisa e profundamente erótica, mas muitos críticos, ao analisá-la, tangenciaram o homoerotismo, não trazendo para o primeiro plano das discussões quais os afetos e quais os desejos que estavam em jogo na obra. "Grosso modo, a fórmula para análise dos desejos que emergem nos poemas é bastante simples: o sujeito do poema se enuncia no masculino, o objeto de desejo são homens viris. Isso fica evidente em diversos poemas", afirma Sinei Sales. Como exemplo, o pesquisador cita o poema Através da nudez, publicado no livro Películas (1979):
Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos
encarcerando um touro. Através da nudez veem-se os
astros.
É onde o poema interioriza
a sua própria hipérbole, a paisagem. (...)
Um outro poema em que a temática homossexual está evidente é Rapaz, publicado em Poesia Completa (2002):
Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.
Homossexualidade em Portugal
Apesar de frequentemente utilizar-se o pretexto de “escolhas de leitura” para silenciar o evidente desejo homoerótico que compõe a obra poética de Luís Miguel Nava, Sinei Sales também ressalta a existência de questões penais em Portugal como responsáveis por essa limitação. "Investigando a história da homossexualidade em Portugal, descobri que na revisão do Código Penal português de 1896 foram incluídos dois artigos que previam punições severas 'aos sujeitos que se entregassem habitualmente à prática dos vícios contra a natureza'”, explica Sinei. Segundo o pesquisador, apenas em 1982 houve uma revisão desses artigos no país, "muitos anos depois de todos os movimentos de reinvindicação dos direitos à diferença". Apesar disso, a crítica literária permaneceu escolhendo posições de leitura que, "quando não ignoravam o desejo homoerótico, apenas faziam menção a ele, sem necessariamente dar-lhe o devido lugar na produção estética naviana", argumenta.