O conceito de “indústria cultural”, desenvolvido pelos filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer para refletir sobre a situação da arte na economia industrializada de seu tempo, não pode ser descontextualizada de sua teoria mais ampla, publicada no livro Dialética do Esclarecimento, de 1947. Comumente utilizada de maneira isolada em pesquisas na área da Comunicação, a ideia não foi desenvolvida para aplicações empíricas diretas e pode perder seu poder crítico quando separada de seu contexto teórico.
“O conceito faz parte de uma crítica aos desenvolvimentos da razão humana ao longo da história da humanidade e perderá o seu potencial crítico, caindo no fetichismo que busca desvelar, se for usado sem levar-se em conta o contexto teórico do qual emergiu”, afirma a jornalista e socióloga Maysa Rodrigues. Ela é autora da dissertação de mestrado Indústria cultural em Theodor Adorno: das primeiras análises sobre a mercantilização da cultura nos anos 1930 à formulação do conceito em 1947, desenvolvida no Departamento de Sociologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas).
No estudo, Maysa investigou como boa parte dos elementos presentes em Dialética do Esclarecimento já estava sendo trabalhada por Theodor Adorno desde a década anterior à publicação do livro. A jornalista também analisou como o filósofo já trabalhava com pensamentos de Karl Marx, Sigmund Freud e Max Weber neste período de preconcepção da obra.
“Me aproximei da teoria de Adorno e Horkheimer ainda quando cursava jornalismo, Me interessei bastante pelo tema, no entanto, senti que o conceito era usado de forma um pouco estereotipada nos estudos da Comunicação. Senti necessidade de me aprofundar e pesquisei a forma como “indústria cultural” era apropriado nos trabalhos recentes de comunicação. Anos mais tarde, decidi trabalhar novamente o conceito, desta vez, dentro do campo da Sociologia”, relata Maysa.
Origens
A pesquisa foi realizada a partir da seleção e análise de 14 textos de Adorno, sobre a temática cultural, escritos entre as décadas de 1930 e 1940.
“Em linhas muito gerais, posso dizer que boa parte das ideias presentes em Dialética do Esclarecimento já estavam presentes nas obras anteriores de Adorno, porém, de uma forma diferente. Isso quer dizer que elementos antigos ganharam novas formulações na obra de 1947”, explica Maysa.
Um exemplo disto é a apresentação da ideia de racionalização no artigo “Sobre a situação social da música”, publicado em 1932. Emprestado da obra de Weber, este conceito integra, segundo a jornalista, o conceito de “esclarecimento” proposto na obra de 1947.
“Ambos implicam na ideia de que o homem busca impor-se diante da natureza a partir do uso da sua razão, de tal modo a deixar de estar sujeito às forças externas. Porém, a racionalização carregaria um elemento de contradição, trazendo aspectos variados e apostos entre si. O mesmo impulso que permitiu ao homem sobreviver diante dos perigos da natureza pode se voltar contra ele. Implica também em que a razão pode desembocar em manifestações irracionais”, esclarece a pesquisadora. Para ela, a contradição detectada por Adorno no texto é o mote da Dialética do Esclarecimento, com a diferença de que, no primeiro momento, a ideia estava circunscrita a questão da racionalização musical.
No mesmo sentido, o trabalho aponta que conceitos freudianos de satisfação substitutiva e de regressão já estavam presentes nos textos de Adorno dos anos 1930.
Segundo Maysa, o conceito de ‘regressão da audição’ de Adorno é em boa medida uma apropriação do conceito freudiano de regressão. Para Freud, as dimensões psíquicas primitivas convivem dentro de um mesmo indivíduo com os aspectos mais maduros. Regressão diz respeito à possibilidade de um retorno a dimensões primitivas, a partir de certas condições propícias. O indivíduo pode regredir a dimensões primitivas quando não aguenta pressões sociais que atingem um nível extremo.
“Tal ideia é central também em Dialética do Esclarecimento, pois a regressão da razão é apresentada na obra como um elemento intrínseco ao que os autores chamam de esclarecimento”, afirma Maysa.
No caso da teoria marxista, Adorno realiza em sua obra uma apropriação seletiva. Sem focar na para a ideia de luta de classes e revolução social, Adorno faz uma interpretação particular da arte a partir do conceito de fetichismo da mercadoria decorrente da divisão social do trabalho.
“A arte foi um tema central na primeira metade do século 20, por conta de inúmeras inovações técnicas que permitiram a reprodução das obras e, consequentemente, um alcance inédito em termos de mercado. As implicações da massificação cultural e da imbricação entre arte e economia era um tema do momento que dividia as opiniões”, diz Maysa.
Articulações
Para a jornalista, a necessidade de articular os três aspectos (econômico, psicológico e cultural) surgiu como tentativa de compreender as complexidades da época vivida por Adorno e Horkheimer.
Enquanto viam o avanço do nazi fascismo na Europa, os filósofos testemunharam a consolidação do capitalismo monopolista norte-americano e a transformação do projeto socialista na União Soviética em uma ditadura.
“De certa forma, os autores se perguntavam sobre qual tipo de indivíduo (inclusive do ponto de vista psíquico) e qual formatação cultural engendraram a situação econômica e social do tempo presente. E, por outro lado, qual indivíduo seria engendrado por essas mesmas situações”, pontua Maysa.