O título do popular livro "Que Fazer?" escrito por Vladimir Lênin em 1901, que discute a organização de um partido político revolucionário, faz referência direta a obra de outro importante autor russo, Nikolai Tchernichevski, cujo romance "O Que Fazer?", publicado em 1863, foi traduzido diretamente do russo para o português pela primeira vez pelo professor Angelo Segrillo.
O lançamento da edição traduzida foi realizado na última sexta-feira (25) em uma palestra no Auditório da História, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo, onde Segrillo leciona.
"O Que Fazer?" incendiou a juventude russa, inspirou vários revolucionários –como Lênin– e é tido como um dos livros mais importantes da história da Rússia. Na contracapa de sua edição traduzida, Segrillo registrou as palavras de Joseph Frank, o maior biógrafo ocidental de Dostoiévski, que considera "O Que Fazer?" o romance do século XIX que teve maior influência sobre a sociedade russa ao fornecer "a dinâmica emocional que eventualmente desembocou na Revolução Russa".
Dai a surpresa de Segrillo, também coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História, ao participar de uma banca de mestrado do pesquisador Camilo Domingues sobre Tchernichevski e descobrir que a obra ainda não havia sido traduzida para o português.
"Sempre quis traduzir algum livro de prosa que ainda não tivesse sido traduzido, mas jamais me arriscaria com poesia,", brincou o professor. Ele diz ter ficado interessado no trabalho não só pelo fato do livro não existir em português, mas também por toda a trajetória da obra.
Nikolai Tchernichevski escreveu "O Que Fazer?" em apenas quatro meses enquanto estava preso, a mando do czar Alexandre II, na Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petesburgo. O autor era um crítico literário radical, ateu e com fortes ideias materialistas e socialistas, além de editor de uma importante revista. Seu livro conta, a princípio, a história de Vera Pavlovna, que escapa da opressão de sua família, casa-se, e, como não quer depender economicamente do marido, cria uma cooperativa de costureiras. Mais tarde, ela se apaixona pelo melhor amigo do marido, que diz que ela é livre para viver esse romance, assim, o livro também propõe uma "revolução sexual, dos costumes", o que desviou a atenção de seu conteúdo político.
"Em uma primeira leitura, o livro parece piegas, a história de um triângulo amoroso, você não consegue nem ver a revolução ali. É preciso ler nas entrelinhas", explicou Segrillo. Devido à forte censura da época, Tchernichevski escreveu por meio de "mensagens cifradas": metáforas, palavras com duplo ou até triplo sentido, palavras ambíguas e muitas referências históricas e literárias –o que foi um desafio para o tradutor, que levou oito meses para concluir seu trabalho. O livro propõe um debate, por exemplo, com "Pais e Filhos" de Turguenev e cita versos de autores como Goethe e Walter Scott.
A TRADUÇÃO
"A sensação foi de estar realizando um trabalho de detetive, pois era preciso encontrar não apenas a tradução literal das palavras, mas também verificar se não havia outros sentidos escondidos", comentou o professor.
Um exemplo é o personagem Rakhmetov, que se tornou um símbolo do revolucionário-modelo. No livro, ele é completamente dedicado a sua "causa", que no equivalente russo também poderia ser traduzido por "negócio", mas fica subentendido que a tal "causa" ou "negócio" é a revolução.
"Tchernichevski queria mostrar o caminho da revolução, mas não escreve a palavra 'revolução' nenhuma vez.". Para Segrillo, as mensagens cifradas e o fato de ter sido publicado "picotado", em três partes distintas nas revistas literárias, podem ter ajudado o livro a passar pela censura czarista, que estava em pleno vigor na época.
Quando os censores se deram conta, já era tarde demais e a ideia de revolução presente na obra já havia se espalhado. Mesmo assim, foi proibida a publicação do texto em formato de livro.
Para o tradutor, a importância histórica de "O Que Fazer?" é amplamente reconhecida, contudo seu valor literário teria sido subestimado. "A obra tem diferentes níveis de leitura, você pode até ler como um best-seller, mas nada é o que parece naquele livro. Muitos críticos ultrapassaram a camada de leitura do romance piegas e enxergaram a revolução, mas acharam muito didático. Isso já está sendo reavaliado", explicou Segrillo.
"Como tradutor, tive que buscar por muitos sentidos e níveis extras de interpretação o que me fez consciente de que o livro é mais sutil do que muitos se dão conta". A obra, publicada pela Editora Prismas, já está à venda.