"Não vote em branco, vote no preto". Esse era o slogan da campanha para vereador do ativista negro Abdias do Nascimento pelo Partido Social Democrático (PSD). A frase, usada nas eleições de 1954, marcou a incorporação da plataforma da negritude no discurso político de ativistas negros brasileiros. Contudo, essa plataforma não chegou a se estabelecer de fato no Brasil, onde o voto racial não foi consolidado, diz a pesquisadora Edilza Correia Sotero.
Sotero analisou, em sua pesquisa de doutorado, as experiências políticas de membros do Partido Comunista e de ativistas ligados aos movimentos sociais negros, como Abdias do Nascimento, em um momento de "abertura democrática" com o fim do Estado Novo –período ditatorial, no qual Getúlio Vargas fechou o Congresso e extinguiu os partidos políticos– em 1945.
Após períodos de fechamento do Estado, a abertura possibilita que grupos antes reprimidos voltem a se organizar, como aconteceu no Brasil, explica a pesquisadora. Sua tese confirmou que a conjuntura após o Estado Novo favoreceu "a emergência da temática racial na cena política, fruto, em grande parte, da atuação de lideranças negras e da permeabilidade de partidos políticos ao assunto", como o PCB –cuja atuação foi interrompida em 1947 com a cassação do partido–, o PTB e a UDN.
OS COMUNISTAS E OS ATIVISTAS
A tese de Sotero foi dividida em duas partes: uma dedicada aos ativistas ligados aos movimentos negros e outra, ao Partido Comunista Brasileiro. Os dois objetos foram escolhidos após uma pesquisa prévia em documentos e jornais da época, principalmente os produzidos pela imprensa negra, que revelaram nomes de ativistas negros e suas reivindicações.
Sotero chegou ao PCB ao buscar negros que conseguiram se eleger e mergulhou na história do partido para entender o que a questão racial significava para a organização.
Ela descobriu que o partido tinha um longo debate sobre a população negra brasileira que vinha desde a década de 20, quando a organização estava fortemente ligada a Internacional Comunista russa, que divulgou duas publicações sobre a população negra no mundo todo destacando a problemática da chamada "questão negra". Na época, os comunistas brasileiros negavam qualquer especificidade quanto a essa questão, e afirmavam que o problema do Brasil era de classe, sem relação direta com o racismo.
Ao longo dos anos 30 e 40, essa noção mudou, dando lugar à ideia de que o negro era povo e que, para promover a revolução, era preciso atuar junto a esse povo. Sotero destaca o autor Jorge Amado, e mais especificamente seu romance "Jubiabá" –história de um dos primeiros heróis negros na literatura brasileira, pautado na ideologia comunista e no conflito racial– como exemplo do momento em que o partido se organizou de forma clandestina na Bahia e que contou com forte presença negra.
Em 1946, a eleição de Claudino José da Silva, uma das lideranças operárias negras no partido, para deputado federal e o fato dele ser tratado pelo próprio PCB como único deputado federal negro na Assembleia Constituinte, na qual o partido tinha proposta para criminalizar o preconceito de cor, indicam uma mudança de postura do partido em relação à chamada "questão racial" e uma preocupação mais clara para com o tema.
A proposta de criminalização do chamado preconceito de cor, pautada pelo próprio Claudino, enfrentou ampla resistência. Sotero explica que os argumentos contra afirmavam que a medida só iria incentivar o preconceito e que o Brasil não era um país racista. "A lei só passou em 1951, cinco anos depois, mas o discurso que o racismo não existia no país permaneceu", explica a pesquisadora.
Os comunistas se preocupavam com o racismo, mas sua agenda era mais complexa e englobava outras questões, principalmente a luta de classes. O partido reconhecia que o povo brasileiro era negro e trabalhador, o que o levava a trabalhar com a questão racial dentro de um escopo maior da luta proletária, buscando mobilizar, principalmente, os operários negros.
Já os ativistas negros tinham tendências diversas, "mas compartilhavam um discurso e uma agenda". Os socialistas acreditavam que o maior problema era o sistema de classes, enquanto os trabalhistas possuíam um discurso menos pautado por essa questão, mas que enxergava os problemas da classe trabalhadora negra, como falta de acesso. Em suas agendas, compartilhavam a compreensão da existência do racismo e mobilizavam outras questões que não faziam parte do espectro comunista, como a negritude. Inclusive, muitos ativistas em São Paulo já condenavam o envolvimento com a política e com os partidos políticos, dominados por uma elite intelectual branca, que não permitiria um compromisso real com a população negra. Essa posição "foi ganhando legitimidade no decorrer dos anos (...), associado ao fraco desempenho eleitoral dos ativistas negros que se lançaram na política", escreve Sotero.
Atualmente, Sotero diz não conseguir localizar políticos em escala nacional que se candidatem usando a plataforma da negritude. "Eu não consigo imaginar algo como a campanha de Abdias do Nascimento hoje", conclui.