Em agosto, o Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) realizou um grande evento em memória ao professor Nicolau Sevcenko, falecido em 2014. Formado pelo instituto, Nicolau Sevcenko foi um dos mais memoráveis docentes da universidade e sua partida deixou órfã a história cultural no Brasil e um importante legado para a historiografia no país.
De origem ucraniana, seus familiares fugiram para o Brasil em meio à Guerra Civil Russa, escapando da perseguição bolchevique. A perda precoce do pai e dificuldades financeiras da mãe trouxeram uma infância de desafios, dividida entre escola e trabalho, o que não impediu Sevcenko de se dedicar aos estudos e descobrir a paixão pela pesquisa.
Em 1972, graduou-se em história. Em 1981, sua dissertação de doutorado “Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na I República” contribuiu para o uso de obras literárias como fontes de pesquisa. Nesse sentido, Nicolau estava à frente de seu tempo porque voltava a sua atenção para a cultura e para os movimentos sociais num período em que esses elementos eram fontes documentais secundárias e temas como política e economia recebiam maior ênfase.
O período em que vivia era marcado pela partidarização e pelos estudos em história social e econômica, fruto da Ditadura Militar e do contexto da Guerra Fria. Praticamente inexistente na época, a história cultural foi consolidada a partir de suas obras, que voltavam a atenção para as questões sociais e para os registros literários.
De acordo com Nelson Schapochnik, professor da Faculdade de Educação (FE-USP), organizador da homenagem a Sevcenko, ex-aluno e seu grande amigo, o trabalho de Nicolau Sevcenko foi inaugurador. “Ele soube mostrar a complexidade das questões culturais, colocadas em segundo plano. Também recusou encarar essa cultura como homogênea, algo extremamente inovador em seu tempo”, disse à AUN.
Pensar à frente de seu tempo teve um custo: a incompreensão de seus colegas no mundo acadêmico. Enquanto ficção, considerar a literatura uma fonte histórica era impróprio para a época, mas o rigor e a riqueza do trabalho de Nicolau passou pelo crivo de grandes intelectuais, como Rui Coelho e Sérgio Buarque de Holanda. “É importante ressaltar que ele não tratava a literatura como espelho do real, mas como representação”, disse o professor.
Segundo Nelson Schapochnik, Nicolau destacava-se pela capacidade de ser sensível e atento às questões culturais e sociais sem ter a pretensão de ser porta-voz de qualquer movimento. Tampouco estabelecida uma relação de fidelidade a qualquer corrente de pensamento, embora tivesse referências como Eric Hobsbawm, importante historiador marxista, e recorresse ao estudo da interpretação, a chamada hermenêutica.
O compromisso do historiador era, sobretudo, com o objeto e o método. “Nicolau deu um passo além na medida em que buscava coerência teórica e metodológica com o seu objeto de pesquisa, sem partir de pressupostos ou querer levantar qualquer bandeira”, esclareceu Nelson Schapochnik. “Ele fazia parte de um grupo seleto de intelectuais adeptos de um pensamento nômade, em busca de referências que conseguem produzir novos arranjos que desconsertem o leitor”, completou.
Mesmo sendo um acadêmico rigoroso, fiel à ciência, o historiador lançava mão de uma narrativa sedutora. Contribuiu para levar até o público leigo o ensino e a história por meio de uma linguagem acessível e uma excelente relação com a imprensa, diferente de muitos intelectuais.
Além de um legado para a história brasileira, Nicolau deixou saudade para seus alunos, que abarrotavam as salas para ouvi-lo, amigos e colegas. É lembrado por ser atencioso, generoso e por seu amor ao mundo natural, muitas vezes refletido na defesa de causas ambientais e apreço por animais. “Era uma pessoa admirável, extremamente querida e digna. Tratava todos como iguais, de professores à equipe de limpeza do Departamento [de História]”, lembrou Nelson.