Por mais de um ano, Beatriz Accioly Lins acompanhou a rotina de denúncias de violência contra as mulheres na capital paulista. As observações e os relatos resultaram em sua dissertação de mestrado, “A Lei nas Entrelinhas: A Lei Maria da Penha e o trabalho policial em duas Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo”.
Enquanto antropóloga, o objetivo da pesquisadora era fugir da dicotomia “funciona ou não funciona?” e entender como a Lei Maria da Penha estava sendo posta em prática. Para ela, nas entrelinhas da Lei existe vida, e a vida é muito mais complexa que uma norma.
“Meu propósito era entender como, no dia a dia das delegacias, a norma jurídica ganhava vida, que significados e discursos ela produzia”, conta à AUN. “Toda lei depende dos entendimentos, dos valores e das percepções de gênero dos profissionais que trabalham com ela”, completa.
Beatriz presenciou nas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) dificuldades materiais, poucas funcionárias, treinamento insuficiente sobre violência doméstica e sobre a própria Lei Maria da Penha. “O despreparo causava nas vítimas o sentimento de serem tradadas com descaso dentro da própria polícia”, diz. A antropóloga também observa que os problemas afetavam não só as vítimas, mas também as próprias policiais.
Em seu estudo, a pesquisadora aponta que nem todas as vítimas de verdade são tratadas como vítimas legais e casos como violência psicológica e estupros conjugais dificilmente são registrados. “Embora as policiais registrassem diversas ocorrências sob a rubrica da Lei Maria da Penha, algumas denunciantes eram consideradas ‘mais vítimas’ do que outras”, conta.
No caso de estupros conjugais, existe a visão equivocada de que, nas relações, o consentimento está pressuposto e não se pode dizer não. Quando se trata de violência psicológica, que consta na Lei Maria da Penha como algo a ser combatido, o assunto é ambivalente mesmo para as próprias vítimas.
“As policiais tinham muita dificuldade em entender o que seria violência psicológica. Afinal, as pessoas brigam e se atacam verbalmente, então como saber o limite?”, indaga. “A verdade é que o direito brasileiro tem muita dificuldade em lidar com violências não materializáveis”.
Criada em 2006, a Lei Maria da Penha completou 9 anos em agosto. Embora o estudo de Beatriz tenha apontado suas fragilidades, a pesquisadora diz ser contra “diagnósticos apocalípticos” e ressalta o importante papel que ela exerce.
“Nas delegacias, vi a Lei sendo manuseada todo dia, debates e questões éticas enfrentadas. Algumas tentativas frustradas, outras bem-sucedidas”, conta. “A Lei Maria da Penha também tem um efeito pedagógico. As pessoas sabem que ela existe e que violência doméstica e familiar contra mulheres é crime, quer concordem ou não”, justifica.
Recentemente, o Tribunal de Justiça de SP aplicou a Lei Maria da Penha em caso de violência contra uma mulher transexual. Apesar da vitória, a norma recebe críticas por contemplar apenas vítimas cisgêneros (pessoas cujo gênero é o mesmo que o designado em seu nascimento), na maioria dos casos. Nesse sentido, o PL 8032/2014 prevê a aplicação da Lei Maria da Penha às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres.
Beatriz comenta o episódio e cita um dos casos que acompanhou e envolvia uma denunciante trans. “A delegada a atendeu, algo que não era comum, e tratou a moça por seu nome social, mas explicou que, como seus documentos ainda traziam seu nome de registro, o Boletim de Ocorrência não poderia ser realizado”, conta. “Pensando nela, e em tantas outras, fico muito contente com essa recente decisão do TJ de SP de entender mulheres a partir de suas identidades de gênero”.