Quem matou Odete Roitman? E Salomão Hayala? Tudo é culpa da Rita? Quem não se lembra da guerra entre Charlô e Otávio? Das adaptações de livros de Jorge Amado às Helenas de Manoel Carlos, as novelas possuem um lugar destacado na cultura popular brasileira. Os folhetins geram burburinho dentro e fora das telinhas e, por vezes, incrementam discussões sociais. Um caso recente foi a quantidade de comentários gerados após o beijo entre Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg), casadas há mais de 30 anos, em Babilônia (2015). Tendo em mente o espaço que as tramas ocupam na vida de tantos brasileiros, Mariane Harumi Murakami estudou a ficção seriada televisiva em seu doutorado. Atentou-se para a modernização das narrativas com o passar do tempo e, principalmente, para as transformações ocorridas na experiência do espectador diante da história. Surgidas em um bojo fantasioso, as telenovelas adentram, após certo período, em assuntos da realidade de quem as acompanha. Em seu trabalho, a pesquisadora dividiu os enredos em três grupos, desde os anos 50 até os dias atuais, preocupando-se com as diferenças nos modos de interação com a audiência.
Mariane estuda o tema bem antes da análise em questão. No mestrado, explorou Vidas Opostas (2006), transmitida pela Record, pois, em suas palavras, a atração “tinha um apelo diferenciado, falava sobre favela, violência”. Ao ler muito sobre o universo da teledramaturgia, ampliou o objeto de estudo em seu doutorado, dando continuidade a pesquisas que já tinha feito. O interesse pelos quiproquós fictícios resgata uma atmosfera familiar: “Assisto telenovela desde que me entendo por gente. É uma coisa de família”.
A vilão Odete Roitman (Beatriz Segall) de "Vale Tudo" (1988). | Fonte da imagem: colunas.revistaepoca.globo.com.
Melodrama
De Homero aos irmãos Grimm, há séculos que a narração de histórias se faz presente na humanidade. O folhetim francês, sublinha a estudiosa, colocou-se como uma grande influência para os enredos brasileiros. Os causos passaram pelas radionovelas, meio no qual a rádio Mayrink-Veiga foi uma das pioneiras, Amaral Gurgel um dos ícones e os sonoplastas brilharam. O Direito de Nascer (1951), veiculada pela Rádio Nacional, simbolizou o maior sucesso do radioteatro. Com a consolidação dos televisores, a telenovela tornou-se um pilar importante do entretenimento tupiniquim. Nas décadas de 50 e 60, Glória Magadan, autora cubana, trouxe o fantástico para as novelas. Ambientadas em territórios distantes do Brasil, as tramas eram mais melodramáticas e exageradas.
Nessa época, o espectador era mobilizado emocionalmente. Não existia uma participação propriamente dita por parte do público e, sim, um agenciamento. Mariane exemplifica essa noção com uma particularidade de O Sheik de Agadir (1966), produção da Rede Globo, escrita por Magadan e baseada no romance Taras Bulba, de Nicolai Gogol. A teia é armada em torno de um triângulo amoroso e assassinatos, a qual contou com cenas gravadas nas dunas de Cabo Frio, a saída encontrada para representar o deserto do Saara. Em uma revista, um concurso foi lançado para que as pessoas, através de cartas, sugerissem quem teria matado certo personagem. Os escritos foram, de alguma maneira, relevantes para o encadeamento dos episódios. “Foi uma das primeiras formas de interação”, aponta a estudiosa. No fim, relevou-se a identidade do primeiro serial killer da teledramaturgia canarinha: “o rato” era a princesa Éden de Bassora, interpretada por Marieta Severo.
Madelon (Leila Diniz) e a princesa Éden de Bassora (Marieta Severo) em "O Sheik de Agadir" (1966). | Fonte da imagem: filmow.com.
Rés-do-chão
Em um texto acerca da crônica literária, Antonio Candido salienta que ela fica perto do dia a dia, “ao rés-do-chão”. Tal característica, abordar o cotidiano e motes atuais, também pode ser encontrada, a partir do final dos anos 60, nas novelas. O marco dessa virada foi Beto Rockfeller (1968), exibida pela TV Tupi e criada por Bráulio Pedroso. Linguagem coloquial, interpretações mais naturais e incorporação de fatos que estampavam os jornais eram alguns dos elementos que faziam com que a ficção tivesse ar de realidade. Outra inovação foi o caráter anti-herói de Beto, um protagonista que tinha atitudes boas e más. Com o pontapé dado por essa trama, os enredos começaram a caminhar na busca pelo realismo, expondo temas que estavam em voga, como discriminação e divórcio, e destacando o Brasil. Tomadas aéreas e câmeras levadas às ruas, ainda que, majoritariamente, mostrando o eixo Rio-São Paulo, foram contribuições tecnológicas em prol da aproximação com o cidadão comum.
Beto Rockfeller (Luís Gustavo). | Fonte da imagem: televisao.uol.com.br.
“Na segunda fase, [o contato do espectador] é construído por um processo de identificação”, pontua Mariane. “Até o slogan da Globo é isso: a gente se vê por aqui”, comenta. Além desse reconhecimento, o público participava via consumo. A publicidade, nessa etapa, tinha enorme força. A apropriação de signos e produtos floresceu: era possível comprar “o mesmo turbante que a Viúva Porcina usava”. Por intermédio da aquisição de mercadorias, a sensação de pertencimento é tecida.
Transmídia
Na contemporaneidade, com o largo uso da esfera virtual, a interação do telespectador é mais intensa. Em um contexto transmidiático, o indivíduo recebe diferentes conteúdos por meio de mídias distintas, as quais se complementam. “Em Avenida Brasil, por exemplo, eles lançaram, na internet, uma votação sobre qual o personagem que deveria congelar no fim”, relembra Mariane. A equipe do folhetim de 2012 teve que ajustar as sequências para que, sem perca de sentido, a figura escolhida fosse congelada. “Memes” e tirinhas com personagens e bordões também participam do pacote: “Lembro da campanha: compre um pen drive para a Nina”, brinca a pesquisadora. Contas em redes sociais e blogs são elaborados para os tipos que caíram no gosto popular. Firma-se, pois, um “pacto de ficção”, em que a audiência embarca no jogo que a história propõe e até envia mensagens no Twitter de um personagem, sem que, com isso, confunda ficção com realidade.
Carminha (Adriana Esteves) congelada, destaque de "Avenida Brasil" (2012). | Fonte da imagem: nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br.
“Com a internet, as emissoras conseguem ver o impacto dos capítulos na hora”, assinala Mariane. No entanto, “o jeito que a telenovela é feita, hoje, ainda é muito tradicional”. Poucos são os que arquitetam as tramas levando em consideração o ambiente cibernético. Estruturas como a de Cheias de Charme (2012) são ainda uma exceção: “Aquele vídeo das Empreguetes, que viralizou no Facebook, foi uma ação pensada pelos autores”, analisa a estudiosa. Em situações como essa, “a experiência ficcional do público é expandida para outras plataformas”.
A telenovela é, sem sombra de dúvidas, um produto representativo da cultura brasileira e, segundo Mariane Harumi Murakami, “continua sendo o mais popular no país, já que não é todo mundo que é digitalmente letrado”. A pesquisadora discorda de quem acredita que “a televisão morrerá”. O que essa mídia necessita trabalhar são pontos como “o fenômeno da segunda tela” e a geração de conteúdos simultâneos em bases variadas. Atualmente, na era da convergência, o contato do espectador com a novela é feito em muitas frentes, passando do aparelho de TV aos comentários em redes socais. Contudo, como o estudo de Mariane evidencia, a internet não instaurou a interação do público com a narrativa; o campo virtual transformou e intensificou uma relação que nasceu outrora, bem antes do “oi oi oi” e do “óxente, my God!”.
Nazaré (Renata Sorrah), vilã de "Senhora do Destino" (2004). | Fonte da imagem: contamais.com.br.