O Brasil não possui políticas públicas para o enfrentamento do tráfico de pessoas, segundo o mestrado de Anália Belisa Ribeiro Pinto. De acordo a pesquisadora, o país não apresenta um orçamento voltado exclusivamente para o problema, nem relatórios oficiais ou ou uma legislação que respalde um possível trabalho de prevenção e repressão. Isso apesar de ter assinado um documento internacional em 2000 se comprometendo a combater o tráfico.
De acordo com pesquisa da ONU (Organização das Nações Unidas), o tráfico de pessoas atinge entre 500 e 700 mil pessoas por ano, movimentado aproximadamente US$ 35 bilhões –sendo um dos mercados mais lucrativos do mundo, quase tão rentável quanto o tráfico de drogas.
Os estudos de Ribeiro, com base nas pesquisas de um professor de Harvard, apontam que o Brasil é um dos principais países que exporta pessoas para a exploração sexual. Já São Paulo, comparado a outros Estados e mesmo a outros países da América Latina, se destaca pelo tráfico de pessoas para o trabalho análogo à escravidão, principalmente nas oficinas de costura, explica ela.
Seu trabalho, apresentado ao Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (Diversitas) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, buscou evidenciar os desafios e perspectivas do combate ao tráfico de pessoas a partir da assinatura brasileira do Protocolo de Palermo, em 2000.
O Protocolo de Palermo, elaborado pela ONU e ratificado pelo Brasil, prevê ações diretas e um comprometimento nacional e internacional pela prevenção e combate do tráfico de pessoas. Na ocasião da assinatura do documento, a pesquisadora, que já havia trabalhado na implementação em escala nacional de um programa de proteção de testemunhas, foi convidada pela ONU para desenvolver um plano de enfrentamento nacional ao tráfico de pessoas.
"Logo depois, o governo de São Paulo me convidou para implantar e coordernar a política estadual contra o tráfico de pessoas", conta a pesquisadora, que hoje é assessora da Casa Civil do governo estadual.
Depois de quatro anos na coordenação do núcleo de enfrentamento ao tráfico de pessoas, Ribeiro se afastou para iniciar seu percurso acadêmico. "Eu precisei ter um distanciamento importante para fazer uma análise mais isenta."
O TRÁFICO
Por meio de uma análise interdisciplinar –que explora os aspectos históricos, econômicos, jurídicos e filosóficos– o mestrado de Anália Ribeiro traça um panorama da situação brasileira e contextualiza o tráfico de pessoas no mundo.
Segundo ela, o problema está diretamente relacionado com a globalização – e não com um passado histórico recente de escravidão. Por isso, o cuidado, inclusive da ONU, de tratar um dos fins do tráfico de pessoas como trabalho análogo às condições de escravidão e não como trabalho escravo. Isso porque são contextos históricos diferentes, apesar de características semelhantes, como o confinamento e a servidão. "Hoje não há um processo escravocrata inerente à exploração da mão de obra laboral", explica.
Na conjuntura atual, a globalização teria possibilitado um processo de consumo exacerbado, em que o "ter" passa a ser mais forte que o "ser", e intensifica-se a necessidade por um prazer efêmero. "As pessoas passaram a ser mercadoria, escolhidas como peças a serem usadas. A mentalidade é: vou comprar um órgão no Brasil e exportar para a Índia porque lá existe demanda", explica Ribeiro. Assim, o tráfico de pessoas, caracterizado pelo lucro sobre o humano, passa a funcionar numa estrutura global de mercado para atender demandas.
Do ponto de vista filosófico e jurídico, o crime de tráfico de pessoas viola o princípio mais inerente ao ser humano, o da dignidade, que identifica um espaço de integridade moral a todas as pessoas pela simples razão da sua existência. O tráfico coisifica e degrada emocional e fisicamente, destruindo identidades e transformando pessoas em objeto de lucro.
NO BRASIL
O mestrado de Ribeiro busca também delinear o que o Brasil tem feito para enfrentar o tráfico de pessoas desde a assinatura do Protocolo de Palermo, com destaque para os dois planos criados sobre a questão.
Segundo a pesquisadora, o primeiro plano funcionou apenas como uma agenda e não chegou a atingir os objetivos esperados. Já o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil possui "uma metodologia bacana", com condições e ferramentas que o fariam funcionar, mas não é desenvolvido na prática.
"Não existe orçamento, nem a construção de um marco legal, nem um departamento específico voltado para o tráfico de pessoas", explica Ribeiro, que sentiu na pele a dificuldade de encontrar documentação sobre o tema no Brasil. "Não há uma pesquisa que trace um panorama do perfil das pessoas em situação de tráfico ou do processo de aliciamento."
Este é, também, um dos desafios pontuados pela pesquisadora para o Brasil: implantar um sistema de informações para produzir relatórios oficiais e promover uma "transparência democrática" dos dados qualitativos e quantitativos sobre o tráfico de pessoas –Ribeiro se deparou com inúmeros dados sigilosos e secretos.
Para ela, é preciso desenvolver um marco regulatório, integrar as políticas públicas, disseminar informações sobre o problema e, acima de tudo, "ter vontade política" para realmente iniciar um combate efetivo ao tráfico de pessoas.