Diminuição da evasão escolar, melhora da qualidade de ensino, aumento salarial e construção de prédios escolares se tornam metas ao mesmo tempo básicas e complexas quando encontradas num contexto onde alunos caminham quilômetros até a escola mais próxima e os estudos são interrompidos no meio do ano em razão da época de colheita e plantio. Desassistidas pela educação tradicional elaborada pelos governos latino-americanos, professoras rurais do México, Brasil e Bolívia foram ouvidas pela pesquisadora maranhense Marilda da Conceição Martins. Ao retornar de sua imersão na educação da América Latina, Marilda reuniu em sua tese de doutorado, defendida em março deste ano, uma série de indicativos para a reformulação de um currículo pedagógico e de uma infraestrutura alinhados com a vivência campesina.
A falta de participação popular na elaboração do material didático - organizado e distribuído pelo governo - é apontada como uma das principais barreiras para o avanço da educação no campo, povoado pelas minorias da América.
No Brasil, a zona rural é habitada por camponeses de matrizes políticas diversas - como quilombolas e assentados - ou sem adesão ideológica. Em outros países da América Latina, a maior parte dos trabalhadores do campo é formada por populações de origem nativa. Em sua tese, Marilda teve a preocupação de abarcar os principais grupos que vivem dessa terra, catalogando as narrativas de 5 professoras - duas estrangeiras, de linhagem indígena, e três brasileiras (uma ligada ao Movimento Sem Terra, outra sem preferências políticas e uma quilombola).
Tendo em vista essa configuração social distinta e marginalizada, a reivindicação por representatividade nas tomadas de decisão do governo se torna ainda mais urgente como forma de ter garantido o respeito a sua cultura e seus costumes. Afora o conteúdo do material didático, há também a discrepância e descaso com os materiais físicos usados na instrução rural. Marilda relembra o desabafo de uma de suas entrevistadas: “‘A gente não quer mais viver dos restos da cidade. Dos livros riscados, da merenda estragada‘, ela dizia. Tudo o que não servia para o espaço urbano, era mandado para o espaço rural”, comenta a doutora. “Essa é uma situação que foi possível constatar nesse campo latino-americano, que é um campo cheio de precariedade e que precisa ser visto com mais atenção por parte do poder público”, analisa Marilda.
Em relação a infraestrutura, ainda são necessárias a melhoria do transporte de alunos, a construção de prédios propriamente escolares - pois a maioria das escolas funcionam em lugares improvisados, como nas casas dos educadores - e a democratização dos meios de comunicação, do rádio à internet.
Ademais, é impraticável um plano de melhoria da educação que não pense na valorização do profissional dessa área. No processo de formação de professores, ainda é comum que aqueles que pretendem se tornar educadores migrem para a área urbana e trabalhem em empregos sem qualificação para bancar seus estudos. Mesmo que atinjam seu objetivo, a remuneração do mercado de trabalho não supre as expectativas e gastos da profissionalização. Além de que, quando são enviados professores de educação urbana às regiões rurais, o choque cultural é muito grande e a adaptação ao local é demorada.
Conquista da dignidade através da educação
Alguns educadores forasteiros não conseguem nem ao menos se inserir no meio rural, seja por não respeitarem a cultural local ou por não conseguirem cumprir o currículo adequado à educação do campo. Na Bolívia, por exemplo, a Lei de Educação Avelino Siñani-Elizardo Pérez prescreve que os professores ensinem uma língua nativa (o aimará ou o quíchua), além do espanhol, como forma de resgatar a cultura indígena, no entanto, poucos profissionais têm conhecimento de uma delas. Dessa forma, os docentes não conseguem assumir plenamente o papel de um professor no campo. “Um professor de escola rural é um professor que responde por vários papéis. Ele não é só um professor, ele é um conselheiro, um assistente social e é requisitado em todos os eventos do campo, desde uma festa até uma campanha de vacinação ou na resolução da aposentadoria dos pais dos alunos”, explica Marilda. “Existe uma supervalorização do trabalho do professor que não se restringe apenas a territorialidade da sala de aula, mas em todas as dimensões da vida na comunidade”, completa. Com toda essa responsabilidade, os professores são figuras políticas, de autoridade e de extremo respeito no campo.
Para além do papel conciliador e maternal desempenhado no cotidiano do campo, as professoras encarnam a figura vigorosa de defensoras da classe rural em todos os aspectos dessa cultura, sendo valorizadas como fortalezas para a superação e luta contra a discriminação de raça e gênero nessas sociedades afastadas dos grandes movimentos sociais, ainda à mercê do poder dos donos de terra. “Existe o problema da posse da terra nessa sociedade e, se você não tem terra na América Latina, você não tem vida, você não tem dignidade”, pontua a pesquisadora.
No decorrer de suas carreiras, essas educadoras têm que construir uma fala de persuasão e empoderamento, o qual Marilda denominou altruísmo pedagógico. “No discurso, elas têm isso. São professoras engajadas, que querem transformar essa realidade e querem deixar uma contribuição”, explica, ”nos trabalhos que elas realizaram, há um discurso de convencimento de que a educação no campo é significativa”. Além dos encaminhamentos para a formulação de um currículo rural próprio, as docentes se esforçam para garantir que as famílias mantenham os alunos na escola, enfatizando a importância da escritura tal qual a da semeadura. Nas suas falas, os educandos assumem o potencial de construírem carreiras fora do campo se assim o desejarem, renegando o estereótipo de jeca-tatu ou atrasado no qual a sociedade urbana os enquadra.
“A partir dos anos 1990, o Movimento de Articulação por uma Educação do Campo começa a reivindicar por uma educação pensada pelos movimentos sociais, clamando por reforma agrária, direitos básicos e uma educação emancipadora, uma educação que tem vários princípios da educação do campo, que é uma pedagogia histórica, que parte do princípio que homens e mulheres do campo têm uma história de luta, de organização, de vida e que precisam pensar essa emancipação para ter autonomia pra construir as leis da educação e a sua própria história”, conclui Marilda da Conceição.