Dois dos mais célebres escritores do modernismo brasileiro, Mário de Andrade (1893-1945) e Manuel Bandeira (1886-1968) foram novamente reunidos de acordo com suas produções de cartas. Agora, porém, nas correspondências com um outro escritor: Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008), poeta mineiro e integrante da chamada terceira geração do modernismo.
A tese de Doutorado de Simone Goh, de 2013, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, joga luz sobre os escritos epistolográficos dos renomados modernistas com uma lanterna de novo foco. O trabalho analisou os papéis desempenhados por cada um dos escritores, que também mantiveram longa correspondência entre si durante suas vidas, no contato com Guimaraens Filho, cujo pai, homônimo, foi célebre poeta simbolista.
Goh afirma que o estudo nos fornece uma perspectiva histórica sobre o gênero de cartas, avaliando tanto seu caráter escritural como a sua imprescindível dimensão oral, além de, principalmente, investigar a relação estabelecida entre os correspondentes. “Nosso foco foi verificar se as cartas preservavam marcas de face e cortesia, uma vez que Mário de Andrade e Manuel Bandeira, na época, já eram reconhecidos, e Alphonsus de Guimaraens Filho, ainda desconhecido”, explica.
O esforço, assim, foi situar as díspares funções que cumprem Mário de Andrade e Manuel Bandeira no conjunto das cartas trocadas com o jovem poeta. “Os textos são motivadores na medida em que se percebe que os grandes escritores se transformam em professores à distância de Alphonsus”, afirma Goh, notando as preocupações dos modernos quanto a debates de estética literária, que permeavam as cartas. De acordo com a pesquisadora, os objetos de estudo epistolar serviram para avaliar a concepção de gêneros discursivos ali presentes, reparando uma vez também que as marcas de cortesia ou de tratamento empregadas por cada autor na relação com o mineiro representavam diferentes naturezas de laços, afetivos ou não, que ali foram criados.
O que nos dizem as cartas
As correspondências de Guimaraens Filho com cada um dos modernistas possuem diferentes durações, ainda que ambas tenham se iniciado ao mesmo ano. “As cartas têm um período bem longo, desde 1940, em que eles se conhecem, e vão até 1944 (no caso de Mário de Andrade) e 1967 (no caso de Manuel Bandeira). Assim, podemos dizer que as missivas fazem parte de todo o percurso de vida dos modernistas a partir do momento que conheceram o jovem poeta Alphonsus”, elucida ela. A tese se limita a tratar, entretanto, o período entre 1940 e 1944, dentro do qual Andrade trocou seis cartas com Guimaraens, enquanto Bandeira, dezenove.
Essa diferença numérica das correspondências pode estar relacionada às posições assumidas por cada autor nas interações com Guimaraens Filho. “Observei que Mário de Andrade é menos cortês que Manuel Bandeira, pois o primeiro adota uma postura didática nas cartas, discutindo com seriedade o processo de construção de sonetos e de outras formas poéticas com Alphonsus”, argumenta Goh. Enquanto isso, a relação com o outro modernista seria estabelecida em moldes mais afetivos, já que Manuel Bandeira veio a se tornar amigo da família do jovem, tendo sido, inclusive, padrinho de um dos filhos de Alphonsus de Guimaraens Filho, o que nos leva a concluir, segundo a pesquisadora, que suas cartas têm uma dose a mais de afetividade, cortesia e poucos enfrentamentos.
A tese de Goh carrega consigo um princípio que considera a carta um lugar da sinceridade e da plena revelação do autor que a escreve, sendo uma justificativa da pesquisadora quando se refere à relevância de seu trabalho se comparado a outros do cenário acadêmico nacional. “As cartas, a princípio, não foram escritas para serem publicadas”, ressalta ela. “Então, creio que elas mostram as almas dos escritores”, conclui a doutora.