São Paulo (AUN - USP) - Não existe em nenhum lugar uma democracia perfeita; ela é uma construção permanente. É essa frase inspiradora que resume a palestra da professora Monique Konder Comparato, mestra pela Sorbonne de Paris, ocorrida recentemente na Faculdade de Educação da USP. A palestra fez parte da VI Semana de Estudos Clássicos e Educação da FEUSP, e teve como mote a educação e a democracia em Atenas.
O caminho feito pela professora começa com uma descrição da organização das cidades gregas. As cidades antigas eram, antes de tudo, um grupo de homens. Na linguagem da época, falava-se não em ‘Atenas’, mas sim nos ‘atenienses’. A cidade nasceu quando os camponeses decidiram viver em comunidade, agrupando seus santuários familiares, e construíram uma certa organização de poder. E a um certo momento aparece a idéia de que a vida em sociedade só seria possível se todos tivessem direito igual de fala, gerindo os interesses comuns. Isso ajudou na consolidação da igualdade de palavra.
Destaque para a importância desse fato. A própria base da democracia é a igualdade, e a igualdade de fala aqui leva a uma igualdade de poder a todos os cidadãos. Quando os gregos vão fundar colônias no exterior, a partir do século VIII a.C., a primeira coisa que fazem é reservar um espaço no centro da cidade, onde não se poderia construir nenhum palácio, nenhuma casa particular; este espaço seria público. E esta é a invenção do político, da preocupação política, preocupação com o bem público.
Grandes atenienses
Monique ressalta que em Atenas, atribui-se cada etapa da democracia a um herói, legislador ou reformador, que aparece em período de crise. Assim, ela cita Drácon, que teria estabelecido em Atenas as leis escritas, no século VII a.C. No século seguinte, como a população ateniense se tornasse mais urbana, o legislador-reformador Sólon destacou-se por aumentar parcialmente a participação política dos cidadãos, e principalmente por ajudar os camponeses oprimidos pelos aristocratas, resgatando para eles as terras hipotecadas e acabando com a escravidão por dívidas.
Sólon ainda foi brilhante por tentar formar no ateniense o cidadão. Não bastava reformar as instituições na cidade, era preciso que cada ateniense se sentisse responsável por elas. Mais ou menos nessa época são criadas as escolas. Sólon conseguiu ver a importância que a educação tinha para a formação de toda uma população consciente. E um outro reformador, Clístenes, reorganizou a cidade em dez tribos, e mais tarde conferiu por lei a igualdade que todos tinham ao direito da palavra e ao direito de exercer o poder. É sob seu governo que se cria a cultura de debater as questões de interesse público, frente a todos. São necessários argumentos, demonstrações, e o poder de convencimento torna-se decisivo para o funcionamento da sociedade.
A professora detalha as três instituições fundamentais em que era dividido o poder: a “Ecclésia” , uma assembléia do povo; a “boulê” , um conselho de quinhentos cidadãos; e os magistrados, necessários para aplicar as decisões da assembléia do povo. E após isso, passa a comentar sobre a época áurea de Péricles, na qual a democracia teve seu apogeu.
Devido à importância que teve o discurso nos debates de temas públicos, começou-se a questionar a validade desse poder que era dado ao povo. Afinal, o povo era levado pelas paixões suscitadas nesses debates, e facilmente influenciado pelos oradores. Como evitar isso? Então, surgiu uma resposta: deveriam desenvolver competências para controlar paixões e pensar racionalmente em todas as situações. Em outras palavras, deveriam educar para a democracia.
Democracia e aprendizado
A educação, naquele tempo, era da total competência do pai da família. Era ele quem deveria mandar o filho, aos sete anos, aos diversos professores, os quais ele também deveria pagar. As crianças em geral praticavam esporte, treinavam na palestra, aprendiam música, vocal e instrumental, e canto e poesia. Mais tarde, aprendiam a ler, a escrever e a contar.
Porém, essa educação parecia insuficiente para o exercício do poder na democracia. Como os indivíduos vão se inteirar do papel que têm de cidadãos na comunidade em que vivem? Essa nova forma de educação foi trazida pelos sofistas. Eles originalmente era professores de retórica e filosofia que percorriam diversas cidades da Grécia. Chegaram a Atenas por volta de 450 a.C. Ensinavam a arte da linguagem, a falar bem em público, argumentar e aconselhar, atividades essenciais na democracia ateniense. E cobravam bem caro.
Em virtude do preço, aqueles que os procuravam eram filhos de aristocratas e ricos, já interessados na política. Foram intensamente procurados por jovens ambiciosos. Ensinavam como defender as idéias em público, derrotar seus adversários numa discussão e sustentar qualquer idéia com argumentos sutis ou capciosos.
No começo, eles atraíram a atenção de Sócrates, mas ele logo descobriu seus limites, seus exageros. Esses homens rejeitavam a moral e a religião, e não viam para o homem outro ideal que não o sucesso na política ou no comércio. A retórica não tinha nada a ver com a justiça. Sócrates não a considerava uma ciência, porque ela não tinha em vista nem a verdade nem o bem.
O método que Sócrates desenvolveu para combater os sofistas foi mais do que essencial no trilhar de toda a filosofia ocidental. Seu sistema de perguntas e refutações, a maiêutica, era um método exigente e que garantia respostas universais.
O teatro como testemunha
A professora Monique ainda fala de uma importante instituição, que refletia diversas mazelas que assolaram a Grécia nessa época: o teatro. O teatro se tornou em Atenas um elemento essencial na vida da cidade. Era uma instituição cívica tão bem regulada quanto a assembléia do povo. Não era apenas um divertimento; era um dever cívico, no qual o povo aprendia a conhecer a natureza humana, compartilhava sensações e emoções, além de continuar a se educar.
A estrutura da tragédia levava à reflexão e à meditação. São citados Ésquilo, Sófocles e Eurípides, grandes autores de tragédia. Ésquilo, que exalta a liberdade de Atenas e estimula o heroísmo dos homens ajudados pelos deuses; Sófocles, que dá mais importância ao homem; e Eurípides, que opõe Atenas, a democrática, a Esparta, a oligárquica. Também cita-se Aristófanes, grande comediógrafo, que criticava tudo com suas peças mordazes. Foi emblemática a liberdade de expressão que lhe era dada; corresponde à liberdade de imprensa de hoje em dia.
De tudo isso, concluiu-se que a democracia não é feita apenas de instituições; é preciso o espírito cívico. E esta é uma das grandes lições que temos da cultura grega. Como cita a própria autora, num ensaio em que se baseou sua palestra, Jacqueline de Romilly escrevia que as obras da antiga civilização grega, e, sobretudo, de Atenas no século V a.C., se distinguiam pelo excepcional esforço em direção ao humano e ao universal.