São Paulo (AUN - USP) - Em 17 deste agosto, o professor Wanderley José Deina defendia sua dissertação de mestrado com uma discussão entre formação política e estudo da Filosofia no Ensino Médio. À luz de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros teóricos da Escola de Frankfurt, a pesquisa firma e Deina explica que “a Filosofia pode ser um forte elemento de resistência à instrumentalização da razão predominante na sociedade em praticamente todas as suas instituições, inclusive a escola”. Ironia ou não, no dia seguinte, o Diário Oficial do Estado de São Paulo publicava o parecer 343/07 do Conselho Estadual de Educação, CEESP, que desobriga as escolas da implantação das disciplinas Filosofia e Sociologia neste nível escolar.
O parecer, apoiado em ditas ambigüidades da lei, faz defesa incisiva da inclusão transversal destes saberes nos currículos, mesmo que a implementação só possa ocorrer nos conteúdos alheios em escolas que já têm organização completamente interdisciplinar. Contraria, portanto, a determinação do Conselho Nacional de Educação, que, aprovada em 7 de julho de 2006, troca a disposição sobre o ensino “interdisciplinar e contextualizado” das tais disciplinas pela da adequação obrigatória de conteúdos, metodologias e formas de avaliação para o ensino de Filosofia e Sociologia. Isso, de maneira que o educando apresente domínio destes conhecimentos ao fim do curso, como orienta a Lei de Diretrizes e Bases.
“É o que eu chamo de uso sofismático da legislação”, solta o professor Antonio Joaquim Severino, do Departamento de Filosofia da Educação da FEUSP. No documento (http://www.ceesp.sp.gov.br/Pareceres/pa_343_07.htm), o Conselho, através do relatorista Mauro Salles, alega que as diretrizes apontadas pelo CNE não passam de nortes e que cada conselho, estadual ou municipal, tem autonomia para decidir o que lhe serve e o que não. Os estados tinham até agosto deste ano para apresentar propostas de adequação, mas, ainda que escolas da rede estadual já tenham cursos de Filosofia e Sociologia, o Estado de São Paulo optou por negligenciar o parecer 38/2006 do Conselho Nacional (http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb038_06.pdf).
Severino foi conselheiro estadual durante o governo Montoro e explica que se “a posição do CEESP se apega às ambiguidades da Lei”, operando sobre formalismos legais, isso decorre da existência de duas posturas conceituais bastante claras e diferentes sobre o ensino de Filosofia no Ensino Médio. Partidário da vertente que é a favor do ensino disciplinarizado, ele rebate o cumprimento da agenda política educacional que instrumentaliza o discurso da transdisciplinaridade sem ter em vista a aplicação efetiva de políticas; ele o classifica como neoliberal. “Se você perguntar a um conselheiro é claro que ele vai dizer que o ensino dessas disciplinas é muito importante. Mas logo em seguida vai dizer que isso será garantido pela transversalidade”, pontua.
Para Severino e seus companheiros, é preciso garantir a fecundidade própria da Filosofia: isso ocorre mediante a oferta de disciplinas justamente porque elas permitem mediações didáticas para as construções conceituais de que a Filosofia prescinde. Sem questionar os méritos da transversalidade enquanto forma de operacionalizar saberes, o professor pensa que o trânsito por formações educativas diversas tem a ver com maturidade intelectual: “e quem tem que navegar na transversalidade dos valores éticos, estéticos, ambientais é muito mais o professor que o aluno”. Deina, que foi orientado por Severino, lembra ainda que “professores de outras áreas, diante da pressão que elementos como o vestibular, por exemplo, exercem sobre a sua própria área de atuação, dificilmente trabalharão transversalmente os conteúdos de Filosofia e de Sociologia a contento”.
“De fato a Filosofia paira sobre todos os campos do conhecimento”, reconhece o professor Wanderley. No entanto, alerta para o fato de que só a existência da disciplina permite o estudo sistemático – não necessariamente conteudista – de algumas áreas específicas, como a Ética, a Estética e a Política. Ele considera que lacunas na formação para a cidadania podem ser cobertas pela Filosofia e pela Sociolocia, mas também que, “para isso, [elas] precisam estar garantidas institucionalmente com professores formados e uma carga horária mínima que possibilite aos estudantes o aprendizado de seus conhecimentos específicos”. Isto é o que Severino chama de mediação.
Formação emancipatória
Ambos os professores concordam que o filosofar dá sentido à formação política do jovem, porque possibilita que ele desconstrua a lógica cultural e política de que faz parte, ao invés de reiterá-la automaticamente. “Em nossa sociedade predomina a idéia de que o 'saber fazer' é mais importante do que o 'saber porque fazer', ou seja, o saber consciente não é valorizado da forma como deveria. Este tema foi tratado pela Escola de Frankfurt como Razão Instrumental”, descreve o professor Wanderley. O orientador Severino faz a ponte do “tecnicismo” em teoria com as políticas públicas para educação, a seu ver, formadoras apenas de “mão-de-obra dócil e tecnicamente flexível”.
Severino completa definindo que a inexistência de mediação didática em Filosofia é também uma maneira de “negar para esses jovens a possibilidade de formação crítica” – que pode embasar, em um futuro maduro, o entendimento aí então transversal dos campos do conhecimento. Nas constatações de Deina, a singularidade do professor de Filosofia não reside em, para dar um exemplo na mesma orientação teórica, ele debater a própria Dialética do Esclarecimento com a sala, mas de ter competência para apresentar ao educando um modo de filosofar que possa levá-lo a conclusões sobre a indústria cultural tão críticas quanto as que os frankfurtianos colocaram no papel. Para ele, explicitar esses mecanismos do filosofar é algo que o ensino disciplinarizado abarca.
Paralelos e paradoxos
Além de pesquisador do grupo uspiano Filosofia no Brasil e na América Latina: teoria, história e ensino, Wanderley Deina é professor da rede estadual paranaense, e entende que o ensino de Filosofia no Ensino Médio é um desafio cultural nas escolas, mas político no que concerne à gestão do ensino. Em seu estado, a Filosofia passou a ser disciplina obrigatória através de uma lei estadual de 2006, um pouco antes de a determinação nacional sair.
Não obstante a demanda criada por vestibulares como os da UEL e da UFPR impulsione a manutenção da disciplina no ensino paranaense, há esforços legítimos por parte do atual governo para esta sedimentação. Em 2005, professores selecionados entre aprovados em concurso elaboraram o Livro Didático Público de Filosofia, conta Deina: “O material ficou pronto no final do ano passado e foi distribuído gratuitamente para todos os estudantes da rede pública de ensino cursando o Ensino Médio no presente ano letivo”. Forjado por (e para) uma comunidade específica, o livro público que faz parte do tal processo de sedimentação, porque ajuda na criação de uma cultura escolar de estudo, expõe Wanderley, pode ser consultado em http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/livrodidatico/frm_buscaLivro.php?acesso=Leitor&PHPSESSID=2007082619005914 . A reprodução é livre.
Criando um ambiente de formação de quadros estáveis e de profissionalização para o ensino, a efetivação dos professores nas unidades escolares através de concursos também tem papel valoroso. Em São Paulo, os aprovados pelo concurso estadual realizado este ano esperam a classificação final. É o segundo realizado no período de dois anos, houve um em 2005; fato que certamente suspende a lógica de um parecer como o do Conselho. Para somar paradoxos, vale lembrar que a gestão imediatamente anterior da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo levou a cabo, em parceria com a Unicamp, cursos de formação técnico-pedagógica especificamente para professores de Filosofia.
Foi o descaso notado nos departamentos de Filosofia para com a licenciatura que moveu o professor Severino, há muitos anos, à Faculdade de Educação. Hoje em dia, ele nota um crescendo no interesse da academia pela questão e a dissertação de Deina é parte desde edifício em construção. “Há uma tomada de consciência da própria identidade desta área no sentido de reativar de redinamizar a formação dos professores”; para ele, está sendo revista uma tradição que nunca desapareceu. “A filosofia nasceu pedagógica, nasceu paidéia. Justamente porque ela tem esse papel é que fazemos a defesa dela como disciplina”.