São Paulo (AUN - USP) - O Léxico de Guimarães Rosa (Adusp; 2001), da professora Nilce Sant’Anna, do Departamento de Letras da USP, tenta explicar o universo lingüístico de um dos maiores intelectuais do Brasil. Resultado de um estudo de mais de 10 anos, o livro, cuja forma se assemelha a um dicionário, é uma ferramenta para a compreensão do escritor que se notabilizou pela corrente invenção de palavras (os célebres neologismos). Nilce teve a idéia depois de ministrar um curso sobre o autor. "Sentia que até os alunos de pós-graduação tinham dificuldade em encontrar certas palavras", o que prejudicava o entendimento dos textos. "Muitos achavam que era um trabalho impossível", lembra.
Do Léxico constam cerca de oito mil palavras, das quais cerca de 30% não estão nos dicionários. "São neologismos, palavras arcaicas reintroduzidas à língua, ou estrangeirismos", explica. Uma das mais importantes fontes de pesquisa foi o arquivo pessoal de Guimarães Rosa, hoje propriedade do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. O acervo foi comprado da família do escritor, em 1973, e reúne informações sobre sua vida pessoal e profissional, principalmente com relação à sua carreira literária e diplomática. São aproximadamente 20 mil documentos (entre manuscritos, correspondências, artigos de jornais e revistas) que abrangem o período de 1908 a 1971. Além do arquivo, foi adquirida a biblioteca do escritor. A coleção é constituída de 3,5 mil livros e revistas sobre os mais variados assuntos, como filosofia, religião e literatura.
As correspondências trocadas entre Guimarães Rosa e tradutores internacionais são de suma importância para decifrar o processo de fabricação de palavras. "Eles mandavam textos traduzidos e Guimarães fazia observações. Às vezes, até criticava quando achava que não eram bem-feitos", conta Nilce. O volume de cartas mais significativo diz respeito aos contatos travados entre o brasileiro e o tradutor italiano, Edoardo Bizarri, além de Harriet de Onis, tradutora para a língua inglesa. Nessas correspondências, além de explicar a criação dos termos, Rosa também dava sugestões a fim de tornar as transformações mais precisas, já que ele dominava com fluência uma série de idiomas.
Um dos maiores desafios à pesquisa de Nilce foram os "neologismos semânticos", que ela classifica como palavras comuns na língua portuguesa, mas que são empregadas sob diferentes sentidos. As obras Grande Sertão: Veredas e Sagarana forneceram o maior número de termos para o dicionário. A primeira contribuiu com aproximadamente 1,8 mil palavras, enquanto que a segunda, com 930. Sagarana (que quer dizer "à maneira de uma história") foi uma das únicas palavras que Guimarães fez questão de conservar, apesar de inventada. "Ele tinha muito orgulho dela", revela Nilce.
O trabalho que culminou com o Léxico foi feito em etapas. Em primeiro lugar, Nilce elencou palavras, e depois as transcreveu em fichas, com o cuidado de preservar as frases em que elas apareciam. Posteriormente, foi a fase da pesquisa em quatro dicionários distintos e dos comentários de ordem estilística, como a sonoridade. Ela conta que chegou a convidar alguns colegas, mas, pela falta de tempo, tiveram de recusar a proposta. Sozinha, levou cerca de uma década até finalizar o trabalho, sem pretensões de publicá-lo. Porém, mudou de idéia, estimulada por amigos. Aposentada, Nilce confessa que não pensou em desistir: "tinha um grande prazer".