São Paulo (AUN - USP) - Com uma mistura de filosofia, metafísica e cultura argentina, tudo isso dentro de uma narrativa minuciosamente estudada, com toques de fantasia, a obra de Jorge Luis Borges fascina seus leitores há mais de meio século. Em palestra recente na Universidade de São Paulo (USP), o professor de Teoria Literária, Davi Arrigucci Jr., desvendou as técnicas que o escritor argentino usa para construir seus contos, assim como as influências e relações do escritor com a tradição literária.
O ponto de partida foi uma análise minuciosa do conto “O Sul”, que o próprio Borges considera o seu melhor. Nele, Juan Dahlmann, um bibliotecário de Buenos Aires, sofre um acidente não muito grave, mas que o leva a ser internado por conta de uma infecção no ferimento. No hospital, quase morre com uma infecção generalizada, o que muda sua atitude com a vida, e o incita a ir terminar sua recuperação em uma estância nos pampas. Porém, durante a viagem acaba se envolvendo em uma briga com valentões locais e morre em um duelo de facas.
Os fatos narrados no conto podem ser entendidos como reais até o final da história, ou apenas até o momento da internação de Juan, quando ele começaria a sonhar uma morte romântica. Essa segunda leitura é possível através do aproveitamento dos detalhes, já que uma das características mais marcantes do escritor é o aproveitamento do elemento pequeno e decisivo. Nesse exemplo, o desejo do personagem de encontrar um destino trágico e romântico pode ser deduzido no momento em que, diante de duas linhagens distintas, ele escolhe justamente a que possui um antepassado que morreu de forma gloriosa, como herói da pátria Argentina. Arrigucci aponta que uma das dimensões do conto é justamente essa busca pelas origens, impulsionada por um apetite vital característico dos convalescentes. Estes são temas recorrentes na tradição literária e, através dos detalhes, Borges os mistura com as dimensões histórica e biográfica.
As referências históricas começam no próprio título do conto, que remete aos bairros da parte sul de Buenos Aires, primeiro núcleo de colonização da cidade, e ainda aos pampas que se abrem a partir dali. São evocados os conflitos da cultura européia contra os índios e gaúchos, evento que ajudou a formar a nação argentina. O avô de Juan morreu protegendo Buenos Aires do ataque de índios, e na morte de seu neto estará presente a figura histórica do gaúcho, que oferecerá seu punhal para que ele aceite o duelo de facas. Elementos do conto também evocam a própria vida de Jorge Luis Borges, como o antepassado herói, a cultura livresca do personagem, e mesmo um acidente muito parecido que o escritor argentino sofreu.
Esse aproveitamento dos detalhes é característica que o escritor argentino herdou de uma de suas maiores influências, o francês Marcel Schwob, autor de “Vidas Imaginárias”. Nos contos desse livro, Schwob aproveita um detalhe preciso e adequado para evocar toda a vida de uma pessoa, como fez Borges em “História Universal da Infâmia”. O francês também era extremamente inventivo, e se aproveitava de elementos fantasiosos como fazia Borges. Outra importante influência deste é o escocês Robert Louis Stevenson, com quem compartilha principalmente o gosto pela frase muito bem acabada, que chama a atenção por si mesma. Stevenson era ainda um excelente narrador, que ao colocar seu personagem em face do destino, revela seu modo de ser mais profundo. Esse apetite pela coragem e aventura era também característica de G. K. Chesterton, escritor inglês também muito influente na obra de Jorge Luis Borges. Porém, este construía heróis com um certo gosto pela desordem. Essa característica, tão distinta do regrado Padre Brown, personagem de Chesterton, ele atribuía ao próprio povo argentino, poucas vezes tão bem retratado como foi em sua obra.