São Paulo (AUN - USP) - Mais de 44 anos após o golpe que levou o Brasil a um de seus períodos mais sombrios — a ditadura militar, que durou até 1985 — ainda não se fala com desenvoltura dos movimentos que permitiram essa situação. Em sua dissertação de Mestrado, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a historiadora Dharma Pérola Sestini resolveu quebrar essa barreira, e analisar os movimentos femininos da elite conservadora do país. Através de manifestações como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, eles foram fundamentais para sinalizar o apoio da sociedade que os militares precisavam para tomar o poder.
Apesar da década de 60 marcar uma revolução sexual e de costumes em todo o mundo, entre as classes média e alta do Brasil o ideal da mulher ainda era conservador. A ela caberiam as ocupações femininas tradicionais, cuidar da casa, de seu marido, e zelar pela educação e valores da família. Deste modo, ao se tornar responsável pela condução moral, espiritual, e física do lar, ela também deveria defender essa visão de mundo, o que naquela época temia-se estar ameaçada pelo “perigo comunista”.
Entre o ambiente conservador do país, difundia-se a idéia de que o comunismo representava o fim de tudo aquilo que a dona-de-casa deveria proteger: a família, a religião e a propriedade. Assim, como se a nação fosse uma extensão de seu próprio lar, as mulheres da elite conservadora se deslocam para o espaço público, para defender seus valores. Existia principalmente um elemento religioso dentro disso, já que a Igreja Católica se sentia profundamente ameaçada pelo comunismo ateu.
Desse modo, são fundadas diversas entidades femininas conservadoras, sendo a principal delas a União Cívica Feminina (UCF), em São Paulo. Ela surgiu após reuniões em que jornalistas instruíam mulheres da sociedade paulistana sobre os perigos do comunismo. Um dos principais apoiadores dessa iniciativa era o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), ligado a empresários de São Paulo e Rio de Janeiro, que tinha como propósito fortalecer o pensamento contrário ao presidente João Goulart. As medidas progressistas deste, como a defesa das Reformas de Base, incomodavam os interessas da elite tradicional e das empresas estrangeiras, além de abrirem a possibilidade de associarem-no ao comunismo.
Além da UCF, de São Paulo, destacam-se também a Camde (Campanha da mulher pela democracia), na cidade do Rio de Janeiro, e a Limde (Liga das mulheres democráticas) em Belo Horizonte. Esta última teve participação decisiva para que fosse realizada a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. As mulheres da Limde impediram um pronunciamento que Leonel Brizola faria na capital mineira para defender as Reformas de Base, invadindo o palco com rosários e orações na mão. Em resposta, o presidente João Goulart incluiu em seu histórico comício na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, uma passagem que dizia “os rosários da fé não podem ser usados contra o povo”.
Alegando que Nossa Senhora havia sido ofendida, a UCF convocou a marcha. Para isso, usou o nome da primeira-dama do estado de São Paulo, Leonor Mendes de Barros. Esposa de Adhemar de Barros, político famoso pela fama de corrupto, Leonor sintetizava os ideais de mulher da elite conservadora. Bastante ativa em movimentos de caridade, ela foi escolhida para liderar a manifestação.
Após a marcha de São Paulo, ocorreram manifestações semelhantes em diversas cidades do país. No Rio de Janeiro, um dia antes da data marcada para a marcha, 2 de abril, o poder já havia sido tomado pelos militares. Diante disso, resolveu-se usar a manifestação para comemorar o golpe, sendo decretada a “Marcha da Vitória”. Mesmo após todas as atrocidades cometidas pelo regime militar, as mulheres que fizeram parte da UCF continuam a defender o que chamam de “Revolução de 64”. Esta entidade, aliás, continua a existir, apesar de quase todas as outras terem sido fechadas após o objetivo de derrubar o governo ter sido alcançado. Em sua sede, onde Dharma colheu os depoimentos que ajudaram a compor seu trabalho, nada mudou depois de todos os abusos de mais de 20 anos de ditadura no Brasil.