São Paulo (AUN - USP) -Ao discutir as contradições da diferenciação entre erudito e popular no Brasil, especialistas concordam que a universidade ainda promove a segregação da arte do povo. A denúncia foi colocada por Luiz Renato Martins (professor do Departamento de Artes Plásticas, ECA-USP), Lívio Tragtenberg (músico ex-professor da USP e da Unicamp) e Ferdinando Martins (jornalista e sociólogo, crítico teatral no Aplauso Brasil e pós-doutorando no Arquivo Miroel Silveira), em um debate organizado por estudantes da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) como parte da anual Mostra Ecana de Cultura e Arte (MECA).
Luiz aponta que muitos de seus alunos reclamam da falta de espaço para trabalhos que não sejam de “arte conceitual”. Nesse sentido, Lívio critica a institucionalização da criação promovida pelo ensino superior, cuja estrutura impõe um modelo de submissão aos alunos e poda sua criatividade. “O compositor da universidade cria com luva cirúrgica para não se contaminar com interferências populares”, consideradas vulgares, argumenta.
Além disso, o músico, que abandonou a carreira de professor por não concordar com esses aspectos do ensino superior, denuncia a desvinculação da produção dos estudantes em relação à realidade em que vivem. Para ele, muitos projetos fundamentados apenas em teorias distantes do cotidiano do país são usados por professores e alunos apenas para legitimar a instituição universitária, sem produzirem contribuições culturais efetivas para a sociedade.
Luiz Renato também denuncia a “castração de iniciativas criativas”, à qual estudantes e educadores vêem-se obrigados a submeter-se “para sobreviver na burocracia institucional”. No entanto, considera que “é importante passar pela universidade e responder criticamente à ela”, pois trata-se de “um ambiente de reunião de pessoas que suscita diálogos críticos e motivadores” no sentido de novas reflexões, conscientizações e ações.
O questionamento das dicotomias impostas socialmente foi proposto desde o início do encontro, através da exibição do vídeo “Persona Sonora” de Tragtenberg. A produção mostra o trabalho do artista junto a músicos de rua em diversas partes do mundo, e tem como proposta explicitar o “choque” entre universos musicais muito diferentes. Diferentemente de muitos projetos de músicos formados que “moldam” artistas populares para criar composições tidas como sofisticadas, o trabalho de Lívio não interfere na produção destes, pois isso seria apenas uma simulação do processo artístico. “A música deles invade meu mundo, assim como eu invado o mundo deles, de igual para igual”, conta. O resultado é um som agressivo que revela tensões sociais.
Para Luiz Renato, esse tipo de tensão deve ser o objetivo buscado pelos artistas contemporâneos, pois leva à reflexão e à conscientização sobre temas históricos que impõem divisões entre a produção artística de diferentes segmentos da população. No contexto atual, em que o artista admite que nem tudo o que cria é novo, senão releitura de outros trabalhos e autores, os três convidados concordam que a sobreposição de elementos de distintos estilos culturais é fundamental para a criação. No entanto, tal sobreposição deve ser pensada de modo a gerar um “choque”; “a mistura de tudo com tudo faz o contrário, neutraliza as contradições e não tem consciência histórica, é apenas produto de mercado”, aponta Luiz.
O professor destaca que a submissão da produção artística brasileira a interesses econômicos foi institucionalizada com a criação das leis de incentivo fiscal à cultura, sobretudo, no que se refere às artes visuais. Ele expõe que desde a década de 1980, quando foi criada a Lei Sarney (antecessora da Lei Rouanet), os artistas brasileiros submeteram-se à demanda de banqueiros e grandes colecionadores, produzindo objetos com “ar erudito” e “traços de luxo” deslocados da cultura nacional.
Ferdinando acrescenta que, com o desenvolvimento econômico do país e o estabelecimento da cultura de massas, “a classe média emergente passou a querer se afastar do popular, sem possuir os códigos para o entendimento de uma arte tida como erudita”, o que deslocou a importância da criação, pois colocou a cultura como “instrumento de distinção social”. Isso determina que movimentos artísticos de ruptura dos padrões vigentes - aqueles que geram reflexão, como proposta por Luiz Renato – sejam absorvidos pelo mercado e vendidos como produtos; dessa forma, perdem seu poder de contestação, são neutralizados. Não obstante, o sociólogo aponta que tal movimento de ruptura e absorção não está sujeito apenas ao mercado, “o que legitima a divisão entre o que é arte e o que não é arte é a educação”.