São Paulo (AUN - USP) -Não há melhor retrato do imaginário brasileiro do que as novelas. E não há novela brasileira sem a figura da empregada doméstica representada. É raro encontrar alguma família que ainda não tenha convivido com essa relação em seu cotidiano, seja no pólo que oferece o serviço ou no que o contrata.
A profissão tem características únicas, e a distinção começa pela própria Constituição Federal, que nega às empregadas domésticas alguns direitos concedidos a outras categorias de trabalhadores. É uma ocupação onde se confundem relações de trabalho e familiares e que reflete diversos aspectos da sociedade brasileira, como a desigualdade de renda, a baixa escolaridade, o preconceito racial e a discriminação por gênero.
Determinado a investigar como as empregadas domésticas descrevem e interpretam a relação que estabelecem com a família empregadora, o psicólogo e pesquisador Eduardo Name Risk, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, saiu a campo para realizar entrevistas e observações. O resultado foi apresentado na 38ª Reunião Anual de Psicologia, realizada em Uberlândia (MG) no final de outubro.
Foram entrevistadas nove empregadas domésticas moradoras de Ribeirão Preto e realizadas horas de “observação dissimulada”, técnica segundo a qual o pesquisador observa o comportamento e os assuntos discutidos em situação de informalidade (no caso, durante trajetos de ônibus). Todas eram migrantes de outras cidades, do Estado de São Paulo e de Minas Gerais, Goiás, Paraná e Bahia, não haviam concluído o ensino fundamental e exerciam atividades domésticas desde a infância, ajudando a mãe a cuidar da casa e dos irmãos menores.
A recusa dos patrões em formalizarem o vínculo empregatício, que dá direito a carteira de trabalho assinada, pagamento de 13º salário e férias, foi uma das principais queixas apresentadas. Discutir sobre isso com os empregadores poderia resultar na demissão da empregada ou na sua recusa em prestar o serviço, segundo apurou Eduardo.
Outra queixa comum das empregadas era contra as patroas que “ficavam tomando conta de seu serviço”, isto é, dando ordens sobre quais tarefas deveriam ser realizadas e como deveriam executá-las. “Isto é extremamente incômodo para as entrevistadas, pois parece desvalorizar o trabalho que realizam desde criança na casa de seus pais ou de seus parentes”, diz.
Vantagens do serviço apontadas pelas empregadas são a possibilidade de negociar diretamente com os empregadores adiantamentos, faltas e atrasos, e de receber doações eventuais de alimentos, roupas, calçados e eletrodomésticos usados, entre outros bens.
Uma relação ambígua
Eduardo observa que a ambigüidade é um dos aspectos mais presentes na relação. A natureza das tarefas desempenhadas pelas empregadas (como lavar as roupas, fazer o almoço e até cuidar dos filhos pequenos) e sua presença constante dentro de casa a tornam afetivamente próxima à patroa e à família. Porém o dia-a-dia está repleto de sinais avisando que a empregada não faz parte dela. “No espaço da casa, onde se concretiza o trabalho doméstico remunerado, predominam relações de afetividade e consangüinidade, enquanto na esfera do trabalho as relações são impessoais e informais”, afirma.
A ambigüidade se manifesta com maior clareza na relação entre a empregada e a patroa, pois ambas são do mesmo sexo, em geral têm o domínio do espaço doméstico e foram socializadas para executar os afazeres da casa. Os depoimentos colhidos mostram que sentimentos como cumplicidade, apoio e afeto surgem com freqüência entre ambas, abrindo espaço para discutir problemas pessoais e transmitir saberes. Eduardo relata, porém, que a subordinação envolve ao mesmo tempo afetividade e hostilidade. Os patrões, em certos momentos, procuram demarcar quem a empregada é, através da velada indiferença ou de veementes discussões.
Joana (nome fictício), uma das empregadas domésticas entrevistadas, afirma que tem boas relações com seus patrões, mas sente que seu trabalho não é valorizado como deveria. “Empregada doméstica, apesar de você fazer, você é desvalorizada, você não tem aquele valor, você não tem valor nenhum, se você trabalhar em indústria você tem seu valor, não sei te explicar... de empregada doméstica, você é completamente desvalorizada, mesmo pelos seus patrões, eles não te dão um pingo de valor”, diz.
Na “observação dissimulada”, realizada em linhas de ônibus, as conversas abordavam com maior naturalidade os confrontos com os patrões, e as empregadas trocavam “dicas” para levar adiante a relação de trabalho. “Os dominados reagem aos constrangimentos a que estão submetidos, muitas vezes pelas brechas, por meio de subterfúgios, e não através do confronto aberto e se não enfrentam diretamente os dominantes, é porque sabem que tal estratégia seria inócua”, pondera Eduardo.