São Paulo (AUN - USP) - Fascista, comunista, maçom. Humanista e incoerente. Todos estes adjetivos foram atribuídos a uma única pessoa, em diferentes momentos do percurso de uma vida movida pela busca àquilo que considerava sua missão, como sacerdote e pastor. Para Dom Helder Camara, tornar a Igreja Católica mais próxima do ideário cristão era aceitar a missão de libertar os seres humanos de todas as formas de opressão, miséria e da falta de participação nas decisões políticas do país, através de uma religiosidade cristã celebrada e vivida na prática.
É essa trajetória, por vezes discutível e mesmo equivocada em certas passagens, que se desnuda nas 400 páginas de DOM HELDER CAMARA: o profeta da paz, lançado pela Editora Contexto e escrito em parceria pelo sociólogo Walter Praxedes e pelo filósofo e jornalista Nelson Piletti – ambos formados pela USP, sendo este último, ainda, professor da Faculdade de Educação dessa mesma instituição.
Depois de assumirem para si mesmos que pretendiam reconstituir a trajetória de Dom Helder Camara, o que ocorreu em meados de 1993, o período de pesquisa para produção da biografia foi de quatro anos e meio. Mas muito antes, como ex-seminarista em Viamão, Rio Grande do Sul, naquele que foi provavelmente o seminário em que ocorreram as maiores inovações na formação religiosa e política dos futuros sacerdotes do Brasil nos anos sessenta, Nelson Piletti começou a acompanhar praticamente com idolatria a ação pastoral e política de Dom Helder. Em 1994, Walter ingressa no programa de pós-graduação em Educação na USP, sob a orientação de Nelson, e elabora sua dissertação de mestrado sobre a trajetória de Dom Helder na área educacional e sua influência no engajamento dos católicos em iniciativas voltadas para a educação popular.
Foram quase cem anos de profundas e ininterruptas transformações na história do Brasil e da Igreja Católica no país e no mundo. A abrangência do período histórico em que Dom Helder viveu, de 1909 a 1999, institui um personagem que influenciou decisivamente a vida intelectual e política dentro e fora da Igreja. “Primeiro, optamos por apresentar aos leitores as vicissitudes humanas de uma vida cotidiana extremamente densa, de uma complexa teia de relacionamentos pessoais e familiares. Depois, apresentamos suas constantes mudanças de concepções e formas de atuação pastoral e política, segundo as condições sociais e políticas de cada período. Por exemplo, quando era jovem, Helder Camara teve uma formação doutrinária muito conservadora, anticomunista, antiliberal, antidemocrática no seminário em que estudou em Fortaleza. Nos anos 30, muitos jovens talentosos e honestos acreditavam que o caminho para solucionar os problemas do país passava por um regime de governo totalitário, como o de Mussolini, na Itália. Entre estes estavam os amigos mais próximos do jovem Helder e ele próprio. Por isso ele optou pela militância política fascista, que no Brasil era representada pela Ação Integralista Brasileira (AIB), comandada por Plínio Salgado, de quem Helder se tornou amigo. Depois, Dom Helder viveu em sua juventude um longo e demorado percurso de conversão para as idéias democráticas e humanistas. Outra influência intelectual muito importante sobre o padre Helder foi a leitura da obra Humanismo Integral, de Jacques Maritain, e a convivência com Alceu Amoroso Lima, no Rio de Janeiro, que também passava por uma transição intelectual para um pensamento democrático”, revela Walter Praxedes.
Como Dom Helder viveu profundas mudanças ao longo de sua vida, aqueles que o consideravam um adversário a ser atacado foram mudando também. Primeiramente, os socialistas e comunistas o acusavam de fascista nos anos 30. Quando ele mudou sua concepção de apostolado e passou a se dedicar a combater as injustiças, a partir dos últimos anos da década de 1940, passaram a acusá-lo de “político”, com a alegação de que os padres não deviam participar da busca por soluções para os problemas sociais do país.
Depois, grupos políticos mais à direita o acusaram de demagogo, padre de passeata, a favor do uso de drogas e da luta armada contra o governo e, óbvio, de comunista. Walter esclarece: “Dez anos após sua morte, podemos dizer que todos os críticos se enganaram, porque Dom Helder nunca foi nada disso. Ele sempre foi fiel àquilo que ele considerava sua missão como sacerdote e pastor, que era tornar a Igreja católica mais próxima do ideário cristão, e para isso ele recorria aos meios que considerava adequados em cada época, estando, sem dúvida, sujeito também a equívocos. Os familiares de Dom Helder no Ceará, incluindo seu pai, eram ligados à maçonaria, mas nos milhares de documentos inéditos que analisamos nunca detectamos nenhuma ligação dele com essa organização. Ele chegou a ver no marxismo um pensamento válido para a crítica das injustiças produzidas pelo capitalismo, chegou a defender e a proteger militantes comunistas ameaçados pela repressão política durante o Regime Militar (1964-1985), mas temos a convicção de que nunca esteve em seu horizonte integrar uma organização comunista ou romper com a religiosidade cristã católica”.
Considerado o principal precursor da Teologia da Libertação, Dom Helder deixou como marca inconfundível da Igreja Católica no Brasil o compromisso com a democracia e com a busca de soluções para os problemas sociais. “A participação de sacerdotes e leigos em movimentos sociais e organizações da sociedade civil, a exemplo do que ocorre nos movimentos pastorais é sua maior herança política. Sua maior herança religiosa foi o ensinamento de que a fé, por mais fervorosa que seja, não se combina com a injustiça, com a humilhação e a exploração do outro. A fé também pode ajudar a libertar os seres humanos do fanatismo e da intolerância”, conclui Walter.