São Paulo (AUN - USP) - Faz parte da condição humana um certo pressentimento do ético e essas primeiras experiências sobre o tema surgem quando ainda se é criança. Essa é a opinião de Gilberto Safra, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP; na palestra “A Violência Silenciosa: o eclipse do ‘ethos’ humano no mundo contemporâneo”. Apesar de ser comum a visão de que a ética é fruto da combinação entre aprendizagem e formação, não se pode desconsiderar a experiência individual nesse processo.
O psicanalista explica que na infância a criança recebe ou não cuidados por parte da família e da sociedade. Caso seja envolta por tal cuidado passa por uma experiência ética, se isso não ocorre há possibilidade de se desenvolver fissuras psíquicas. É estabelecido um sentimento de perda de si e do contato com o outro, o que pode resultar em uma sensação de não pertencer à humanidade. A conseqüência é uma solidão extrema e o desenvolvimento de uma concepção niilista da existência (desencantamento).
Salienta que o cuidado é algo complexo e contemplativo de inúmeras vertentes, entre elas a hospitalidade. O mais importante no que lhe diz respeito é a aceitação do outro como ele é. Muitas vezes há uma expectativa missionária que envolve a chegada de um bebê. Caso essa criança não responda aos anseios dos pais, pode passar por uma situação de repressão e ter sua singularidade tamponada. Uma das implicações disso é a convivência com um sentimento de humilhação, além da possibilidade de reproduzir o que se passou consigo. Aquele que não pode ser recebido tem dificuldade de receber, tolerar.
O ambiente, no qual os humanos crescem, é outra questão a qual Safra destaca. É imprescindível que a criança encontre um local cuidado, organizado. Dessa forma, passa por uma experiência de amor e respeito. Por outro lado, caso não haja essa organização, sente uma displicência para com ela, sente-se pouco importante. Para ilustrar os efeitos que a manutenção de um bom espaço traz para as pessoas, ele cita uma pesquisa realizada pelo metrô: quanto mais cuidado o metrô se encontra, menos há vandalismos e destruição do patrimônio pelos usuários.
Além do ambiente organizado, a criança também tem necessidade de encontrar uma figura de autoridade (não uma força qualquer, e sim alguém que de fato encarne a possibilidade de realização, de participação). Uma vez que não encontra essa possibilidade ética é possível que assuma um ideal fantástico não relacionado com sua condição humana (narcisismo, megalomania) ou, ainda, que busque uma autoridade pelo negativo (seqüência de delinqüências na expectativa de encontrar alguém que o pare).
Para ele, essa figura de autoridade está em um momento de crise, porque muitos pais, crendo dar liberdade aos seus filhos, não passa noções de responsabilidade. O que é algo que as crianças precisam. Liberdade sem responsabilidade gera jovens adultos os quais se assemelham a adolescentes; ficam perdidos, desesperados, desencontrados, com um sofrimento inacessível.
Em sua conclusão, Gilberto Safra enfatiza a importância de tratar os seres humanos, desde a infância, considerando sua singularidade e de lhes dar a chance de participar de sua comunidade, ser acolhido e acreditar que sua ação possa ser transformadora. Resume seu pensamento na frase: “Em toda criança, o mundo recomeça”.