São Paulo (AUN - USP) - O montador e diretor Eduardo Escorel discutiu, em seminário do 13º Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), realizado entre os dias 6 e 9 de outubro na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o uso da imagem em documentários cujos temas residem em eventos do passado.
O cineasta, que trabalhou em filmes como “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, apontou para uma tendência, no Brasil, de se fazer documentários que tratam do passado em detrimento de filmes que buscam questões do presente. Para discutir esse tipo de filme, ele valeu-se da apresentação de três obras ou parte delas.
A primeira foi La Rabia (A Raiva) de Pier Paolo Pasolini e Giovannino Guareschi, de 1963. O filme italiano foi feito a partir de uma proposta do produtor de cine-jornais Gastone Ferrante de se criar um documentário através apenas de imagens de arquivo. Originalmente, seria dirigido apenas por Pasolini, um diretor de “esquerda”. Mas Ferrante, preocupado com as críticas ao capitalismo e ao colonialismo feitas pelo cineasta, resolveu dar voz aos “dois lados”. Convidou, portanto, Guareschi, popular diretor de “direita” da época. Assim, o filme, dividido em duas partes, busca a resposta para a questão “Por que nossas vidas são dominadas por descontentamento, angústia, medo da guerra pela guerra?”.
Escorel apontou para o fato de que as imagens usadas pelos dois artistas são meramente ilustrativas para o discurso proferido verbalmente por eles. “Por mais distante que os dois diretores sejam ideologicamente, há uma postura muito próxima, se não idêntica, em relação a como fazer o filme. Em nenhum momento se interrogam sobre o sentido da imagem que estão usando. Pasolini poderia fazer o seu filme com as imagens que Guareschi selecionou e vice-versa. Nos lembramos mais do que é dito, e não do que é visto. Há uma postura, que durou até há pouco tempo, de aceitar a imagem pelo seu valor de face”.
Assim, colocou-se a questão sobre o valor da imagem em relação ao discurso que se faz sobre ela. Escorel citou, como outro exemplo, uma obra de Alain Resnais, Noite e Bruma, no qual o autor faz uso de imagens do filme O Triunfo da Vontade, da propaganda nazista, para contrapor-se ao Holocausto e ao nazismo. Ele ponderou que muitos intelectuais, como Claude Lanzmann, se contrapõem ao uso desse tipo de arquivo, independente do discurso para o qual ele se coloque a serviço.
O diretor tratou também dessa questão a partir de uma obra de sua autoria, uma série de documentários sobre o Estado-Novo (1937 a 1945). Ele citou como exemplo o uso de um vídeo em que Getúlio Vargas, ditador da época, aparecia desfilando com um carro em um 7 de setembro. No caso, as imagens denotavam sucesso, a praça lotada e as pessoas alegres. Porém, elas foram feitas um mês antes da queda de Vargas.
Escorel apontou também para a dificuldade de lidar com as fontes antigas. Ele citou, como exemplos, um filme em que é mostrado um busto de Getúlio sendo feito por um artista plástico americano e outro em que aparecem os pais do ditador. Em ambos os casos, não são retratados a prisão de Monteiro Lobato, que ocorreu no dia do busto, e os pedidos de emprego e as denúncias de subversão, que Vargas, em seu diário, diz terem acontecido na ocasião de reunião com a família, na qual muitos políticos e pessoas diversas estavam presentes.
O filme J., também do próprio Escorel, feito por encomenda pelo projeto “Marco Universal – Direitos Humanos”, trata da história de um morador de uma comunidade do Rio de Janeiro que foi assassinado por membros de uma milícia. Ele, que originalmente fez elogios ao grupo composto por policiais, depois acabou por denunciar suas ações ilícitas. Tendo sua identidade revelada em matéria do jornal “O Globo” através de uma fotografia, foi morto violentamente pelos criminosos. “No filme foi feita a opção de não revelar explicitamente a identidade dele para não reproduzir o que levou a sua morte”, disse o diretor.
Ele disse ainda que buscou usar imagens mais do que ilustrativas. “As tomadas filmadas na cidade foram feitas bem cedo de manhã para que ela parecesse deserta, desabitada, para acentuar essa via-crúcis em que J. não encontra, mesmo com as denúncias, nenhum tipo de proteção”.