São Paulo (AUN - USP) - O recente aumento dos relatos de casos graves de malária provocados por Plasmodium vivax torna inadiável o desenvolvimento de pesquisas por uma vacina contra a versão da doença causada pelo parasita. Ao menos, é o que defende a pesquisadora Irene da Silva Soares, que estuda uma vacina contra o estágio eritrocítico (sangüíneo) do protozoário, ao ressaltar que a espécie é responsável por 80% dos casos de malária no Brasil.
A professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, que desenvolve sua pesquisa no Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, explica que, por infectar apenas hemácias recém-lançadas na circulação sangüínea – o que torna mais branda a anemia, sintoma comum da doença –, o Plasmodium vivax é reconhecidamente menos agressivo do que o Plasmodium falciparum, parasita causador da variedade mais grave de malária humana. Segundo ela, esta constatação fez com que o Plasmodium vivax fosse, durante muito tempo, subestimado e considerado um parasita incapaz de causar maiores danos ao organismo. No entanto, muitas vezes fruto de políticas sanitárias equivocadas, como a utilização desenfreada de drogas de combate à malária – na maioria das vezes, a opção mais barata –, tem-se observado, nos últimos anos, um aumento da incidência de protozoários resistentes aos medicamentos.
Diante do maior número de pesquisadores envolvidos no desenvolvimento de uma vacina eficiente no combate ao Plasmodium falciparum, Irene Soares busca em sua pesquisa, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), desenvolver uma vacina eficaz contra o Plasmodium vivax, espécie que prevalece em todo o continente americano.
Um parasita de ciclo complexo
Diferente de vírus e bactérias, seres relativamente simples, os protozoários do gênero Plasmodium possuem ciclo de vida complexo e cada um de seus estágios apresenta antígenos específicos, isto é, substâncias capazes de induzir o desenvolvimento de mecanismos de defesa pelo organismo, como anticorpos. Além disso, este ciclo apresenta variações de uma espécie para outra. Tudo isso não apenas faz com que o tratamento seja diferenciado para cada espécie, mas exige também o desenvolvimento de vacinas específicas para cada estágio do parasita.
De modo geral, no entanto, há três estágios principais a se considerar no desenvolvimento de uma vacina. No homem, o ciclo tem início com a picada da fêmea do mosquito do gênero Anopheles e a simultânea infecção pelo estágio conhecido como esporozoíto. Por meio da circulação sangüínea, os esporozoítos, presentes na saliva do inseto, atingem o fígado e instalam-se em suas células. No interior delas, os esporozoítos passam por uma série de transformações e divisões, dando origem a milhares de merozoítos, o segundo destes estágios. Uma vez lançado na corrente sangüínea, cada merozoíto invadirá uma hemácia, na qual irá sofrer um novo processo de divisão celular, gerando mais dezenas deles. Concluído este processo, estes rompem as hemácias, dando, assim, origem aos sintomas característicos da malária, como a anemia e as crises febris, exclusividade desta fase do ciclo. Estes merozoítos invadirão novas hemácias, dando prosseguimento à infecção e agravando os sintomas da doença. Alguns deles, porém, diferenciam-se em gametócitos, terceiro principal estágio, que compreende as suas formas sexuadas, ou seja, masculinas e femininas. Por ocasião de uma nova picada, o mosquito ingerirá estes gametócitos, no organismo do qual terá continuidade o processo de desenvolvimento destes até a fase de esporozoíto, fechando, assim, o ciclo evolutivo do parasita.
Diante de toda essa complexidade, Irene Soares explica que há três principais estratégias de imunização: “uma vacina para prevenir a infecção, baseada em antígenos do esporozoíto, que é a forma infecciosa, uma vacina contra as formas sangüíneas [merozoítos], que visa reduzir os sintomas da doença, e uma vacina que bloqueie a transmissão, produzida com antígenos das formas sexuadas que o mosquito ingere”.
Inicialmente concebida para combater a invasão das células hepáticas apenas por Plasmodium falciparum, a primeira destas estratégias é a que se apresenta em fase mais avançada de pesquisa. Ainda assim, a vacina contra o primeiro estágio do parasita, conhecida como RTSS, tem apresentado baixa eficiência e proporcionado um curto período de proteção – pouco mais de um ano, segundo Irene Soares. Dessa forma, os pesquisadores têm se empenhado, cada vez mais, na busca de substâncias capazes de potencializar a ação do antígeno, conhecidas como adjuvantes.
Valendo-se da mesma técnica, a pesquisadora busca, agora, desenvolver uma vacina contra o estágio sangüíneo (merozoíto) de Plasmodium vivax: “não é uma vacina que vai impedir a infecção, mas que irá reduzir os sintomas da malária e evitar a malária grave”. “O foco do nosso trabalho tem sido a identificação e caracterização de antígenos imunogênicos [capazes de ativar o sistema de defesa do organismo] em infecções naturais, que tenham se mostrado também imunogênicos após a imunização de camundongos e primatas não-humanos – no caso, macacos. Até agora, o que temos são vários antígenos promissores e continuamos buscando outros. Na verdade, agora temos nos concentrado mais em dois antígenos particularmente promissores. Estamos testando, também, diferentes formulações de adjuvantes, selecionamos algumas combinações [antígeno-adjuvante] que funcionaram bem para o macaco e o próximo passo seria testar no homem.”
Baseando-se nos resultados obtidos em pesquisas com Plasmodium falciparum para desenvolver seus trabalhos, Irene Soares nutre grandes expectativas diante da publicação, no ano passado, do genoma do Plasmodium vivax: “agora, com o genoma, pode-se buscar alvos completamente novos e desconhecidos. Então, a nossa idéia é não ficarmos presos a esses antígenos com que estamos trabalhando, mas buscar, no próprio genoma do parasita, novos alvos para a vacinação”.
Perspectivas
Embora as expectativas sejam grandes, a maioria dos pesquisadores duvida da possibilidade de se desenvolver uma vacina que proporcione imunização absoluta, uma vez que a fuga ilesa de apenas um dos estágios do parasita daria prosseguimento à infecção. Mas, como bem lembra a professora da FCF, “nada impede que as vacinas sejam usadas de forma combinada”. É importante ressaltar que, ainda que, inicialmente, elas fossem capazes de proporcionar 100% de proteção, jamais poderiam ser abandonadas as demais medidas preventivas, como o combate ao vetor (Anopheles) e cuidados individuais – utilizar repelentes quando em áreas endêmicas de malária, evitar ficar exposto nos horários em que o mosquito costuma picar, entre outros.
Se tudo der certo, as pesquisas poderão trazer alento a milhões de pessoas atingidas pela doença que, segundo o Projeto Atlas da Malária, é a nona causa de morte em todo o mundo e que, apenas em 2003, afligiu mais de 300 mil brasileiros, levando à morte trinta deles, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).