São Paulo (AUN - USP) - A coleção “Jornalismo Literário”, lançada em 2001 pela Companhia das Letras, foi uma das iniciativas que relançaram o tema da literatura de não-ficção no Brasil. No dia 12 de novembro, em uma parceria entre o Centro Cultural Banco do Brasil e o Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, alunos, professores e profissionais do jornalismo se reuniram no Auditório Freitas Nobre para um debate sobre jornalismo literário.
O jornalista Matinas Suzuki Jr. iniciou o debate contando sobre a dificuldade de encontrar os clássicos do jornalismo literário em circulação no mercado brasileiro – fator que motivou a Companhia das Letras a lançar essa coleção. “Editar esses livros era uma oportunidade de reintroduzir clássicos de jornalismo para o leitor brasileiro”, afirma Matinas. O primeiro livro lançado pela coleção, “Hiroshima”, foi eleito pelo júri da University of New York como o melhor trabalho jornalístico de todos os tempos, e não havia sido publicado no Brasil até então. Em 2001, a Companhia das Letras teve a iniciativa de organizar os textos clássicos do jornalismo literário em uma só coleção para permitir uma avaliação crítica do conjunto das obras. Ao final de cada livro, há também um posfácio escrito por colaboradores e especialistas para contextualizar a obra. Hoje, com o renascimento do jornalismo literário em todo o mundo, esses textos e muitos outros também estão sendo lançados por outras editoras.
O jornalismo literário recebe muitas críticas por ser um texto mestiço – nem jornalismo, nem literatura. Ao mesmo tempo em que fere os princípios de objetividade e imparcialidade do jornalismo, seus relatos também não apresentam espessura literária suficiente para estar na categoria de literatura. Como Matinas diz, o jornalismo literário é um “balão solto no ar entre o chão do jornalismo e o céu da literatura”. Daniel Piza, jornalista e escritor, diz que “o jornalismo e a literatura são dois países divididos pela mesma língua, cuja única fronteira é a liberdade autoral”. Em seguida, explica que a narrativa de não-ficção é um tipo de jornalismo que se inspirou na literatura para adotar recursos que não são comuns ao jornalismo tradicional: riqueza de detalhes, tratamento das figuras como personagens de uma trama narrativa, hierarquização de informações com o objetivo de criar uma atmosfera dramática. Resumindo, o jornalismo literário se baseia na “técnica narrativa aplicada à não-ficção”. Matinas complementa: “Esses caras não foram para as ruas para fazer literatura, mas encontraram uma boa maneira de escrever sobre o que viram”. Ao contrário do “lead” jornalístico, dos jornais descartáveis, os textos de jornalismo literário “sobreviveram ao tempo”, e são lidos até hoje com interesse renovado pelo seu jeito diferente de narrar os fatos.
Matinas fez ainda uma analogia entre o jornalismo literário e a relação entre comédia (estilo baixo) e tragédia (estilo alto). Para ele, a literatura de não-ficção mistura os estilos alto e baixo no mesmo discurso: apesar de sua formação literária rica, o autor fala de coisas que não são elevadas, que são acessíveis a todos. Por sua importância, Matinas afirma ainda que “talvez esse seja o gênero literário mais importante do século 20”. Daniel Piza, apesar de não concordar totalmente com essa afirmação, também acredita que o apogeu do jornalismo literário tenha ocorrido durante o século 20, com o New Journalism dos norte-americanos. Nessa época, foi lançado “A sangue frio”, de Truman Capote, e “Na pior em Paris e Londres”, de George Orwell, que inaugurou a tradição moderna do jornalismo literário. Segundo Piza, esse gênero tem uma tradição anglo-americana muito forte. “É uma história de 300 anos. Vem desde os grandes romancistas do século 17, como Charles Dickens.”
Afinal: é jornalismo ou não é?
Além de algumas dificuldades de nomenclatura e conceituação, o jornalismo literário também esbarra na hegemonia do “lead” como único modo de se fazer jornalismo atualmente. Matinas explica que as técnicas hoje tomadas como universais nas redações são muito recentes no meio impresso, e esse modo de se escrever notícias veio muito mais de necessidades do que de escolhas. O telégrafo, por exemplo, era um espaço muito caro, e por isso exigia que os jornais escrevessem notícias curtas. “O lead nasce de uma necessidade técnica, a de compilar todas as informações. O jornalismo vem de uma tradição muito maior do que essa técnica – a periodicidade.”
Daniel Piza também acredita no renascimento do jornalismo literário no mercado brasileiro. “O jornalismo lead, seco, sem lado autoral, não é a única forma de jornalismo possível. Agora existe a percepção de que se pode abrir pequenos espaços para o jornalismo literário”, comenta. A revista Piauí, que vem conquistando cada vez mais leitores, é um exemplo de que isso é possível. As crônicas, com seu viés jornalístico e técnicas narrativas, também se aproximam muito da literatura de não-ficção. As revistas literárias da década de 1970 foram um marco na história da imprensa brasileira. Com uma abordagem criativa e ousada, a revista Realidade rompeu os padrões do jornalismo tradicional, introduzindo a subjetividade na fotografia e no texto jornalístico. “O Brasil já tem uma tradição de jornalismo literário. Euclides da Cunha pode ser considerado o primeiro jornalista literário do Brasil, pois se deixa comover pela condição humana em sua narrativa dos fatos. Euclides viu um drama brasileiro ser encenado naquela guerra, e não apenas uma sequência de fatos”, afirma Daniel, relembrando os grandes nomes da literatura brasileira. Em obras como “Os sertões”, a descrição muitas vezes parece cinema, e faz o espectador se projetar nas personagens. Apesar dessa rica bagagem, Daniel conta que “a tradição brasileira é descontínua, pouco estudada e pouco incentivada pelos órgãos de imprensa.”
Decadência dos jornais
“Se os jornais não se reinventarem, eles vão acabar.” É assim que Matinas resume a crise que o jornalismo impresso tem vivenciado nos últimos anos, com a hegemonia da internet e o livre acesso à informação. “O mercado aposta em histórias mais bem contadas. Os jornais estão perdendo sua hegemonia, e precisam encontrar um novo caminho – talvez seja esse o caminho”, diz Matinas, usando a revista New Yorker como exemplo de uma mídia impressa que apostou em histórias bem contadas e já está colhendo os resultados.
Daniel Piza complementa que o jornalismo brasileiro anda muito carente de criatividade, e também aposta na qualidade estilística como forma de contornar a crise. “O manual de redação é um ponto de partida, não é um ponto de chegada”, explica Daniel. Para ele, a força que o documentário tem conquistado como gênero cinematográfico prova que as pessoas estão, cada vez mais, buscando histórias bem contadas para os fatos do mundo.
Hoje, a preocupação com o texto é muito grande nas revistas – a Folha e a Abril, por exemplo, já contam com oficinas de texto para qualificar sua equipe de redação. Para Matinas, no entanto, é importante arriscar um pouco além disso: “O jornalismo tem que mergulhar na experiência particular, em histórias concretas e reais por trás dos acontecimentos.” Segundo ele, existem fatos e histórias extraordinárias para se narrar o tempo todo, mas há uma dificuldade muito grande em encontrar quem patrocine essa longa apuração. Ainda assim, atualmente há um ambiente mais propício para esse tipo de produção nas editoras, e já existem cursos extra-curriculares para incentivar essa prática, como o curso de pós-graduação da Academia Brasileira de Jornalismo Literário, em São Paulo.
Em suas últimas palavras, Matinas pareceu inspirar os jovens jornalistas ali presentes: “Existe uma coisa indefinível e irracional que é o prazer de ler uma boa história.” Apontando os livros como fonte enriquecedora na formação do jornalista, Matinas buscou desmitificar a técnica jornalística e a desumanização do entrevistado: “Muitos autores dizem não tomar notas durante as entrevistas, apenas observar. Muitas vezes, os olhos do entrevistado dizem mais que suas palavras.”