São Paulo (AUN - USP) - “Uma vez na 5ª série perguntei de onde vem o leite e a resposta dada pelos alunos foi ‘da caixinha’. A vaca sumiu nesse processo.” O depoimento dado pela professora Gloria fez parte de um debate entre alunos e professores de geografia da USP sobre a importância da disciplina para a educação básica. A discussão foi parte da IV Jornada de Geoensino e iniciou-se com as exposições das professoras Glória da Anunciação Alves, doutora em geografia urbana, e Bianca Carvalho Vieira, doutora em Gestão Ambiental e professora do Departamento de Geografia da USP.
De acordo com Bianca, os Padrões Curriculares Nacionais (PCN´s) reconhecem uma série de habilidades que os alunos devem apresentar quando no ensino básico. Entre eles, a capacidade de “perceber-se integrante e transformador do ambiente”, “conhecer o mundo atual”, “conhecer a funcionalidade da natureza” e “conhecer a espacialidade e temporalidade dos fenômenos geográficos”, o maior desafio, segundo ela.
No entanto, não é exatamente isso o que acontece. Embora a geografia escolar tenha como fonte a geografia acadêmica, em sala, deve se revestir de contornos pedagógicos específicos. “O que deve ser identificado quando se ensina o relevo? Como integrar as linguagens conceitual e gráfica nesse ensino? É mais fácil a Fátima Bernardes ensinar com os recursos do Jornal Nacional do que eu”, comentou a professora.
Porém, para Bianca, o principal percalço para o ensino da geomorfologia ¬- ciência que estuda as formas do relevo e como estas influenciam a organização do espaço - é a abordagem macro escalar. Ou seja, nas salas de aula, as primeiras formas abordadas são montanhas, planícies e planaltos, unidades demasiado abstratas para a compreensão de crianças. “Eles [os alunos] não tem noção de tempo e espaço para falarmos de placa tectônica. Me perguntaram uma vez se podíamos cair numa área de subducção...”
“Reconhecer a origem das abstrações é lidar com elas por meio de analogia, metáforas e outros recursos de linguagem”. Filmes e desenhos colaboraram muito nesse sentido, como Os Flintstones na década de 60, a Família Dinossauro e Jurassic Park na década de 90 e, mais recentemente, o longa de animação A Era do Gelo. Mesmo assim, a primeira coisa que pensam os alunos quando lhes é exigido retroceder tanto no tempo são os dinossauros, e não as formas de relevo. Até a utilização de fotos e imagens tem uma limitação: há coisas que não se pode ver, tem que ultrapassar a imagem em si para considerar elementos ausentes, como o tempo.
Para a professora, quanto mais retrocedemos na escala geológica, pior. Nesse sentido, formas de relevo micro escalares, como a voçoroca – efeito da ação erosiva em relevos sem vegetação -, se destacam porque podemos percebe-las no dia-a-dia. “Por que, então, começamos ensinando as macro?”, questiona-se, “As pessoas precisam ter uma noção básica do sistema Terra para lidar de forma responsável com possíveis perigos. Trata-se de um conteúdo que permite uma abordagem integrada doas saberes”, afirma.
O conhecimento pelo questionamento
A professora Bianca, por sua vez, ressaltou a questão do excesso de conteúdo. Para ela, a preocupação que devemos ter quando trabalhamos com os alunos é que “não queremos formar mini geógrafos, é preciso selecionar o conteúdo, não há a necessidade de ser tão aprofundado. A gente esquece para quem estamos falando quando usamos certas definições”.
Citando Yves Lacoste, para quem “a geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra”, ressaltou a importância de mostrar na disciplina como os conhecimentos geográficos foram estrategicamente usados ao longo da história. De acordo com ela, a essa época existiam dois tipos de geografia: a dos professores, disciplina simplória e enfadonha, limitada a um conhecimento enciclopédico, e a dos Estados maiores, quando constituía um conjunto de representações cartográficas e de conhecimentos variados referentes ao espaço. Ou seja, possuía um uso eminentemente estratégico para que minorias a utilizassem como instrumento de poder.
“Hoje, pode-se dizer que a geografia é uma ciência humana: estabelece as relações recíprocas entre sociedade e natureza. No entanto, com o desenvolvimento das ciências, fomos perdendo essas relações ao passo que houve a separação entre aspectos físicos e humanos, inclusive nas universidades.” Assim, a professora afirma que os dois lados da geografia são apresentados como duas ciências, sem integração.
“Nosso papel hoje é dar essa unidade que falta. Será que há possibilidade de fazer isso no ensino básico se a divisão já se apresenta no ensino superior, onde os professores são formados?”. Ainda, problematiza o porquê de os alunos acharem que a geografia é “decoreba”: “Há uma tendência em perder a dimensão da natureza no nosso cotidiano. Sua presença parece emergir apenas na ocorrência de desastres naturais e seus resultados marcam conforme são difundidos pela mídia. Depois, esquecemos e perdemos a dimensão de novo. Tudo que faz parte de nossa vida é feito da apropriação da natureza. Entretanto, já perdemos a dimensão natural dos objetos, não nos perguntamos ‘de onde vem esse lápis’?”.
Para ela, a formação do professor é fundamental no sentido de retomar a relação sociedade-natureza. É na escola que a formação do conhecimento toma corpo, o processo de ensino só se dá por meio de pesquisas e reflexões em sala de aula. A dicotomia geografia física-humana deve ser quebrada, então, a partir dos objetos do cotidiano, os quais os alunos nem sequer percebem que são da própria natureza. “Devemos levantar questionamentos a partir dos conhecimentos que eles trazem, dos costumes, e somá-lo ao conhecimento científico. Não trazer conceitos e conteúdos, mas construí-los junto com os alunos. O conhecimento deve sair do questionamento.”