São Paulo (AUN - USP) - Mona Baker, do Centro de Tradução e Estudos Interculturais da Universidade de Manchester, veio ao Brasil comentar sobre as estratégias de “renarração”, termo que prefere usar, sobre “tradução”. “Falo de tradução como uma forma de renarrar. Há muitas formas de tradução, acredito que uma delas é contar a história de novo, de outra forma”. Para ilustrar seus pontos de vista, a professora usou exemplos de tradução de textos políticos do inglês para o árabe.
“Tradução não é um exercício linguístico, mas uma atividade social que atravessa uma educação politica” iniciou Baker, lembrando ainda que o público em geral não é ciente de sua observação. “O público tem expectativas de que esse seja um exercício neutro, completamente imparcial. Porém a vida lhe ensina que não há tal coisa em qualquer que seja o contexto”.
A questão levantada, portanto, é como tradutores e editores negociam esse paradoxo que vai das expectativas a prática. Segundo ela, tradução é uma atividade de equipe, que em conjunto deve encontrar uma solução para o paradoxo.
Delimitar o espaço da tradução é a resposta primordial. O tradutor também tem sua agenda de interesses, iniciando pelo motivo que o levou a traduzir o texto. Porém sua voz deve ser silenciada ao lado da voz do autor.
Outra importante distinção feita pela professora é aquela entre textos traduzidos no exterior ou no interior dos países. Os primeiros trazem um aspecto civilizatório, no qual os criadores da obra – e seus tradutores – decidem o que as pessoas devem ler, o que atende as necessidades do país estrangeiro, levando a estes o conhecimento adequado. O Global American Institute, especializado em traduzir clássicos americanos para os árabes, é um exemplo. Pode-se citar aqui, também, o projeto americano nos anos 60 de assumir a responsabilidade por todas as traduções realizadas na Brasil.
Já as traduções realizadas no interior dos países que recebem as obras estrangeiras respondem a necessidades diversas: traduzem para se conectarem ao mundo. É o exemplo da organização “Next Page Foundation”, cujos ideais estão escritos na primeira página do website: “Nossas atividades são baseadas na premissa de que o acesso ao conhecimento e informação é crucial para a participação das pessoas em moldar a sociedade que vivem e promover compreensão intercultural”.
A terceira questão levantada pela professora foi o da dificuldade de se definir um texto político. “Diferentemente dos outros tipos de texto, qualquer texto pode adquirir significado político, dependendo do contexto”. No regime nazista, por exemplo, a literatura produzida era imbuída da ideologia nazista e traduzir tais obras era uma atividade política, mais que literária.
O espaço do tradutor
De acordo com Baker, há espaços específicos em um livro onde tradutores e editores costumam expressam suas vozes. É o caso dos títulos, capas, contracapa, introdução, rodapé e ilustrações. Áreas que circundam o texto e geralmente sofrem intervenção, além do texto em si.
Para exemplificar, o primeiro caso apresentado pela professora foi o do livro “Stupid White Men”, de Michael Moore. O caso é sútil, pois o livro já reforça alguns valores do mundo árabe, não havendo grandes alterações.
No entanto, elas ocorrem: a capa original, que leva uma foto do autor, na versão árabe é substituída por uma imagem da bandeira americana, com o ex-presidente americano George Bush em segundo plano, sendo aprisionado pelas listras vermelhas. Ainda, há o acréscimo de um subtítulo, que diz: “A verdadeira face da América”, o qual, na verdade, apenas reforça os valores do livro.
O segundo caso é mais delicado: Contending Visions of the Middle East: The History and Politics of Orientalism, de Zachary Lockman, foi traduzido três anos após sua publicação. A capa foi mantida, apenas com uma inversão de título e subtítulo. O mais interessante, porém, está na introdução. Nela, o tradutor revela sua “simpatia pelo livro” e ressalta a sua importância para os árabes, que terão que fazer um “esforço intelectual” para lê-lo. Praticamente alega não se tratar de um livro fácil e que tradução não se restringe a reforçar valores, mas também em olhar para si mesmo e encontrar problemas que não estão apenas na América. Ou seja, a introdução justifica-se por concordar com um livro que, a princípio, feriria o mundo árabe.
The Clash of Civilization, de Samuel Huntington é mais um caso interessante. Considerado a bíblia da administração Bush, o livro reforça estigmas e ideologias que polarizam o mundo. “Você não pode apenas traduzi-lo para o mundo árabe porque o livro tem a cultura como alvo, porém você deve faze-lo porque é que se passa no mundo”, diz Baker.
Curiosamente, foram feitas duas traduções. A primeira, de 1998, é egípcia. Com uma imagem completamente abstrata na capa, apresenta uma introdução de 20 páginas na qual uma figura intelectual do país disserta sobre o porquê da tradução. Um trecho é usado na contracapa, o que chama a atenção, pois um espaço que geralmente tenta vender o livro dessa vez diz “leia, mas não acredite”.
A versão libanesa mantém a capa original. No entanto, há duas introduções: a primeira, dos dois tradutores justificando-se; a segunda, 49 páginas de contestações. “No momento que você chega ao livro em si, ele já foi completamente desmontado”.
“No entanto, nem todas as pessoas leem a introdução”, lembrou Baker. E é por isso que o livro está repleto de notas de rodapé que tentam quebrar com todo e qualquer argumento do autor, sempre concluindo com “isso não é convincente” ou “não é coerente”.
Por fim, o último exemplo mostrado é o do livro do jornalista israelense Joseph Flinkston, Anwar Sadat: a visionary who dared (um visionário que ousou). Sadat foi presidente do Egito de 1970 à 1981. Durante o período, tentou promover a aproximação entre Israel e Egito. Porém seu projeto falhou em muitas frentes. A tradução em árabe apresenta o seguinte título: Anwar Sadat: the illusion of chalenge (a ilusão do desafio). Sadat não era um visionário, mas um desiludido.
A imagem da capa, um perfil de Sadat na moeda de César, foi substituída por uma foto que veicula a imagem de Sadat como um militar. Na contracapa, a primeira informação dada é a de que o autor é um judeu israelense e a introdução, feita pelo editor, traz um tom de zombaria (“que descanse em paz”, diz).
“O balanço do ethos profissional e imperativos políticos significa separar intenções do autor e da equipe de tradução, respeitando espaços. Geralmente, quanto mais séria a intervenção realizada, mais o texto tende a ficar próximo de seu original”, conclui Baker. A palestra aqui renarrada foi ministrada em inglês.