São Paulo (AUN - USP) - As relações existentes entre as histórias góticas inglesas e a obra romântica O Guarani, do brasileiro José de Alencar, vão da estrutura do enredo à aproximação de árvores tropicais com castelos da Idade Média. De acordo com Daniel Sá, responsável pela pesquisa, a busca por uma literatura tipicamente brasileira, que teve impulso com o Romantismo, impediu que a apropriação feita por Alencar se tornasse mera cópia. A pesquisa resultou em um livro, que recebe o mesmo nome da dissertação: Gótico tropical: o sublime e o demoníaco em O Guarani.
Segundo Sá, as principais semelhanças se dão na forma de imagens e estrutura do discurso. O enredo se desenrola em formato labiríntico, à moda dos góticos: “As ações no livro se passam em apenas uma semana, mas, graças a esse recurso, conseguem ocupar mais de 300 páginas”, afirma ele.
A apropriação de imagens se dá de modo mais intrigante. Como são elementos narrativos que fazem uso de uma conjuntura de tempo e espaço, Alencar não poderia simplesmente transferir certas imagens presentes nos romances ingleses. Adaptações seriam necessárias para que a obra conseguisse transmitir a ideia da história ter se passado, de fato, em terras brasileiras. “Os castelos medievais são um bom exemplo disso. No Brasil, não existiam construções como essas, comuns na Europa. No entanto, isso não é impedimento para o romântico, que transforma árvores em pilares seculares, com copas que se encontram no céu em forma de arco”, explica. Sá, atualmente professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), já se dedicava ao estudo de gêneros literários e dos caminhos do romance brasileiro desde a graduação.
Pesquisando desde a influência da literatura portuguesa às leituras dos brasileiros, o professor percebeu que os autores do Romantismo, ao romperem com Portugal, buscaram se diferenciar através de referências de outros países.
Fugindo da linguagem épica empregada por Gonçalves de Magalhães, José de Alencar se amparou no Romantismo para construir uma obra nacional, que fosse adequada a um país novo como o Brasil. O romântico transplantou aspectos do que leu para o que produziu, fazendo adaptações que deixassem a obra com uma “cara brasileira”. Já conhecida pela Academia, a informação de que Alencar lia os góticos ingleses forneceu o gancho para a aproximação feita por Sá.
“Um dos movimentos mais importantes dentro do Romantismo foi o inglês, junto com o alemão”, diz o professor. Para exemplificar o alcance dessas influências, ele cita outros autores que também se utilizaram de elementos góticos, como Álvares de Azevedo em Noite na taverna, e em poemas de Castro Alves e escritos de Machado de Assis. “No entanto, essas duas últimas aparições são mais sutis. No Alencar é mais perceptível, além de mais original, com a história se situando no Brasil”.
Apesar de ser um escritor muito estudado, as pesquisas possuem enfoque geralmente no lado indianista das obras de José de Alencar. Daniel Sá queria fazer diferente: “Pouco foi falado a respeito do gótico nesses escritos. Alfredo Bosi fez alguns apontamentos nesse sentido, dizendo que a natureza imita a arquitetura medieval, por exemplo. Eu aproveitei essas ‘dicas’ e fiz uma leitura mais fechada, focada no Guarani”.
O gótico inglês
A literatura gótica surge no século 18 na Inglaterra, com a publicação de O castelo de Otranto, de Horace Walpole. Caracterizada principalmente pela recorrência de castelos e cenários medievais e vilões, donzelas e cavaleiros melodramáticos, a escola trabalha uma atmosfera narrativa que insere o medo e o terror nas histórias.
O termo “gótico” é referência à tribo dos Godos, povo germânico que habitava a região do baixo Danúbio.