São Paulo (AUN - USP) - “Riobaldo queria se afirmar como o homem que era no presente, ou seja, fazendeiro proprietário de terras e feliz no casamento, mas seu passado o condena”, diz Márcio Barbieri, autor do estudo. Quando o personagem narra os fatos de sua vida, tenta amenizar a culpa que sente por ter amado Diadorim (mulher que se vestia de homem para vingar a morte do pai), que, para ele e para todos os outros jagunços, era homem. Só que no presente ele já sabe que Diadorim, na verdade, era mulher, portanto pode confessar seu amor e buscar redenção.
O personagem Riobaldo reconstrói sua história ao contá-la ao “Doutor” e, com isso, deixa transparecer sua duplicidade no romance de João Guimarães Rosa. Segundo a pesquisa O tempo das formas em Grande Sertão: Veredas, o tempo que passou entre o momento em que o ex-jagunço fala (a enunciação) e os acontecimentos sobre os quais ele fala (o enunciado) gera um relato influenciado pelos sentimentos.
Ele não consegue ser uno, seu discurso é perpassado o tempo todo pela dúvida e pelo pecado que pensa ter cometido. “O protagonista diz: ‘Fui e não fui o jagunço Riobaldo’. É um paradoxo que significa que ele nega ter sido jagunço, no presente, mas de fato foi, no passado”, explica Márcio.
O tempo é metáfora, pois verdadeiramente só há o presente. “O passado é formado apenas por memórias e o futuro ainda não foi construído”, afirma Márcio. Além disso, de acordo com Reinhart Koselleck, um dos teóricos consultados para a pesquisa, o tempo é produzido, já que os fatos históricos só passam a existir a partir de ações humanas. Da mesma forma, a história de Riobaldo só existe quando um certo “Doutor” a escuta e, depois, é prestigiada por algum leitor. Quem lê seu relato também é responsável pela consolidação daquilo que ele conta.
O tempo aparece como jogo, como em Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Porém, Bentinho e Brás Cubas ironizam essa questão com seus leitores, ao dizerem que estão relatando suas vidas da forma que melhor lhes convém, o que revela a arbitrariedade do que contam. Em Memórias Póstumas, o narrador chega a dizer abertamente para o leitor que vai trabalhar com os acontecimentos como quer e sem pressa, já que está morto e tem uma eternidade para se dedicar a essa atividade. Ele brinca com a ordem dos capítulos, não segue a cronologia dos fatos e se perde para novamente se encontrar com as digressões que faz na narração.
Guimarães Rosa aborda isso de forma sutil, o narrador mostra pequenos causos da história, conquista o leitor e não abre o jogo. Em Machado de Assis, fica claro para qualquer leitor, que ele questiona o tempo; em Grande Sertão, o tempo se esconde e esconde também a dualidade de Riobaldo.