São Paulo (AUN - USP) - Uma pesquisa realizada pela toxicologista Virgínia Martins Carvalho, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, em parceria com o Instituto Médico Legal, indicou a importância da observação neuroquímica do cadáver após a morte. A análise é de aplicação extremamente usual em indivíduos com detecção ou suspeita de uso de drogas, como a cocaína, momentos antes do óbito.
A pesquisa, pioneira na área, estudou39 cadáveres entre 15 e 55 anos, separados em grupos com ou sem a detecção do uso de cocaína no momento que antecedeu a morte. No grupo de indivíduos que apresentaram positividade para a droga, a análise identificou uma grande concentração de neurotransmissores estimulados pelo uso de cocaína, principalmente a dopamina (e seus respectivos metabólitos, que são produtos do metabolismo desse neurotransmissor). A média de concentração desses neurotransmissores apresentou uma diferença estatística muito grande quando foi feita a comparação com o grupo negativo para o uso da droga, onde os compostos foram encontrados em quantidades bem menores.
A análise da presença de dopamina e seus metabólitos no post mortem pode se transformar numa importante ferramenta para a medicina forense em casos de morte envolvendo o uso da droga. Um estudo mais aprofundado a partir da concentração do neurotransmissorauxilia na reconstituição da morte e na determinação de sua causa, em bases legais. “Essa indicador neuroquímico é mais um dado para o legista, além da concentração de cocaína no sangue e outras matrizes, como o cérebro”, explica Virgínia.
A diferença estatística na concentração de neurotransmissores se deu apenas na análise dos núcleos da base, local de ação da cocaína envolvido no efeito euforizante e estimulante. Isso indica que a região é o melhor local para o estudo dos efeitos neuroquímicos após a morte. “Os núcleos apresentam um padrão de referênciade um local que apresenta muitas vias dopaminérgicas”, explica a toxicologista. Na pesquisa também foram analisadas as concentrações de dopamina nos córtex frontal e nas proximidades dos ventrículos.
Em um dos cadáveres examinados, cujo uso da cocaína foi comprovadono histórico do caso e análises toxicológicas, a concentração da droga do sangue não foi muito grande. Porém, o indivíduo apresentou alterações neuroquímicas consideráveis, com alta presença de dopamina. Esse caso é um dos exemplos de como a análise post mortem pode trazer interpretações importantes para a descoberta do modus operandi da morte, como identificar se o morto era um usuário crônico ou usual da droga. O metabolismo tem diferentes reações de acordo com a frequência de aplicação da cocaína, o que se explica pela chamada suscetibilidade individual. Isso explica o fato de o indivíduo, mesmo tendo ingerido pouca quantidade da droga, ter apresentado fortes alterações neuroquímicas.
Atualmente, os estudos de padrões bioquímicos post mortem ainda se encontram em processos de discussão e aprofundamento de pesquisa, e por isso não apresentam uso na prática forense. A análise da concentração de cocaína no cadáver se dá, basicamente, pelo método comum de examinaçãode sangue e outros tecidos, o que muitas vezes é insuficiente para caracterizar uma overdose. No entanto, a análise neuroquímica é bastante utilizada no estudo de doenças como o Mal de Alzheimer e Esquizofrenia e representa inovação valiosa na medicina legal.
Para Virgínia, a maior integração entre a medicina legal e pesquisas acadêmicas é a melhor maneira de incorporar esse e outros métodos na prática: “A parceria entre Instituto Médico Lega e a universidade deve ser fortalecida. Esse é o melhor caminho para o aproveitamento e aplicação dos estudos da neuroquímica post mortem”, aponta a pesquisadora. Segundo ela, também é necessário aumentar a amostragem de análise em cadáveres, além de ampliar o estudo para outros fármacos ilícitos.