São Paulo (AUN - USP) - No último dia do Simpósio Internacional A Esquerda na América Latina, promovido pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH) entre 11 e 13 de setembro, um debate lotou o auditório e empolgou estudantes de todas as áreas. Intitulado Esquerda, igrejas, diversidade sexual e homofobia, o evento contou com a participação de Laerte Coutinho, cartunista e fundador da Associação Brasileira de Transgêneros (ABRAT), Marília Coutinho, doutora em sociologia da ciência, atleta e presidente da Aliança Nacional de Força, e Horacio Gutiérrez, professor livre-docente do Departamento de História da FFLCH.
Especialista em História da América, Gutiérrez foi quem deu início à mesa, com uma panorama cuidadosamente preparado por ele sobre a questão da homofobia em seu país de origem, o Chile. Após afirmar que o país possui “uma sociedade altamente machista e homofóbica em comparação aos outros países latinoamericanos”, o professor destacou que a discussão da homofobia só conquistou espaço no Chile na década de 90 – período em que passava pelo processo de redemocratização, após 17 anos sob o governo ditatorial de Augusto Pinochet.
Gutiérrez mencionou ainda alguns marcos históricos importantes para o fortalecimento da luta contra a homofobia e o princípio de reconhecimento legal dos direitos da comunidade LGBT. A criação do Movimento de Integração e Liberação Homossexual (Movilh), o surgimento dos primeiros portais e programas de rádio e TV voltados a temáticas LGBT e a realização, desde o ano 2000, da Marcha pela Igualdade são alguns desses acontecimentos. Além disso, o pesquisador relatou alguns casos que ele considera simbólicos para uma compreensão geral da questão da homofobia no Chile, entre os quais vale citar o da ex-juíza Karen Atala, que perdeu a guarda de suas filhas para o ex-marido por ser lésbica, e só conseguiu de volta, após inúmeras tentativas, quando recorreu à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Outro caso relevante, que, segundo Gutiérrez, causou um verdadeiro escândalo entre os cidadãos chilenos foi a descoberta e publicação póstuma de cartas de amor que a escritora Gabriela Mistral – primeira latinoamericana a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1945 – trocara com sua secretária.
O último caso mencionado pelo professor foi o de Daniel Zamudio, jovem homossexual de 24 anos que foi atacado por um grupo de neonazistas e morreu em março deste ano, após passar 25 dias hospitalizado. A repercussão foi tão grande que levou à promulgação de uma lei antidiscriminação, a “Lei Zamudio”, não sem uma violenta oposição da Igreja e das Forças Armadas.
Após a fala do professor Gutiérrez, foi a vez de Marília Coutinho, que levou à mesa o conceito de alienação corporal, que ela define como um impedimento de exercer as funções motoras naturais, imposto às mulheres já na primeira infância. As consequências desse fenômeno seriam, entre outras, maior índice de distúrbios alimentares e sobrepeso, uma relação com o espaço e o corpo muito mais difícil que a dos homens e a falta de ferramentas para lidar com a opressão de gênero e a violência sexual. Segundo ela, “é muito mais difícil, para quem não se apropria do seu corpo, adquirir uma agressividade maior para enfrentar a opressão”. A maioria das mulheres, portanto, estaria vivendo esse processo de alienação corporal e, por essa razão, seria muito mais suscetível ao abuso sexual direto e às várias outras formas de violência e opressão de gênero. Após relatar algumas experiências traumáticas que viveu, ela conta que, por meio da prática de esportes de força, foi capaz de realizar um processo de reintegração de seu próprio corpo, e afirma: “Todo mundo pode – não só pode, mas deve – recuperar seu corpo. E o resultado disso é indescritível.”
Incisiva, ácida e convincente, Marília ainda denunciou a prevalência de postos de poder ocupados por homens no mercado de trabalho, no esporte e no meio acadêmico. E levantou a problemática do conservadorismo e da violência de gênero – física ou simbólica – presentes tanto na direita quanto na esquerda. “Essa carteirinha [de filiação política à esquerda] não dá acesso gratuito à isenção do seu machismo”, bradou, fazendo a plateia aplaudir longa e efusivamente.
Após duas falas extremamente relevantes e sensatas, cuja aprovação podia ser notada na excitação da plateia, a palavra foi concedida ao cartunista Laerte Coutinho, que tornou-se uma figura muito importante nos debates voltados ao gênero e à sexualidade após assumir, há alguns anos, a condição de transgênero. Muitas vezes descrito como crossdresser, ele afirma, no entanto, que prefere ser reconhecido como travesti. “No Brasil, crossdresserassumiu um caráter classista”, afirma. Entre as transgêneras, Laerte explica que, infelizmente, ainda é possível identificar um certo elitismo, uma hierarquização e discriminação em relação às travestis – que são normalmente associadas à prostituição e à pobreza. Para ele, “a travesti é um desafio muito grande, visualmente, em termos de modelo, símbulo, tudo”.
O cartunista contou também que já foi criticado por não adotar um nome feminino. Ele afirma que tem um – Sônia –, mas que prefere manter o nome que usa há 40 anos, do qual gosta muito. Ele conta também que a exposição pública de sua condição de transgênero o reinseriu no debate de direita e esquerda, e afirma que identifica sua militância com a esquerda, embora nem sempre ela seja vista como tal. Ele ainda esclarece o motivo de seu posicionamento: “A esquerda é composta de pessoas que de alguma forma são capazes de propor discussão e reflexão crítica sobre tudo. O que marca é a abertura para propostas novas.” Já a direita, segundo ele, teria um grande mote, um tanto assustador para quem defende a diversidade sexual e o combate à homofobia: “Conforme-se, o mundo é assim, aceite, amadureça”.
Sobre a questão do movimento gay e da suposta tolerância à diversidade sexual existente no Brasil, Laerte opina: “Nós temos um modo esquizofrênico de lidar com essas questões”. Ele argumenta que, por um lado, a sociedade brasileira demonstrou um posicionamento bastante evoluído quando repudiou a atitude de Marta Suplicy à época em que foi acusada de promover, em sua campanha para a Prefeitura de São Paulo, um ataque homofóbico a seu principal adversário. Por outro lado, essa mesma sociedade continua dando exemplos frequentes de violência e opressão aos LGBTs.